quinta-feira, julho 10, 2008

PORQUE UM CEGO TAMBÉM FALA DAS CORES

Há coisas que a gente nunca seria capaz de dizer se estivesse em jejum. É precisamente por essa razão que George fazia questão que todas as conversas sérias apenas acontecessem no final do jantar, quando já todos tivessem bebido o suficiente para que as palavras fossem, naquele momento, o pensamento. Puro na sua essência. Assim, sem mais nem menos. Desprovido de qualquer filtro moral. Sem medo de nada. Como se não houvesse amanhã. George sabia também que dizer coisas que nunca se seria capaz de dizer se estivesse em jejum é também um risco. Mas um risco que valia a pena correr. Foi assim, então, embutido neste espírito e neste propósito, que convidou a Rute para ir lá a casa jantar. Mais uma vez. O convite foi feito no dia anterior, à porta da cantina. Quer dizer, não foi bem um convite, daqueles em que se interroga o convidado. Não. George foi menos assertivo e demasiado afirmativo.
Olha, amanhã há jantar em minha casa, disse George.
E pronto. Estava o convite feito e aceite, tudo ao mesmo tempo, num piscar de olhos, sem sequer precisar da concordância da convidada. Rute não gostava nada disto. Achava que entre amigos devia haver uma certa cerimónia. Não daquelas insuportáveis que metem faqueiros e copos de cristal e guardanapos de pano e coisas assim. Mas antes uma cerimónia que a fizesse sentir especial, já que se considerava uma amiga especial. Apesar de tudo, apesar da irritação que se tornou crónica com o tempo, nunca era capaz de fazer um reparo sequer.
Ele é assim, dizia Rute, totalmente resignada.
O dia do jantar chegou. Eram 21h00 quando a Rute tocou à campainha. Pontual como sempre. George abriu-lhe a porta e deu-lhe um beijo apressado, daqueles em que se encosta a cara e beija-se o ar. Não precisou de a mandar entrar. Ela entrou de rompante, despiu o casaco e sentou-se no sofá da sala. Aliás, um sofá pelo qual tinha grande admiração e onde se sentia confortável e segura. Não é que fosse bonitinho até porque não combinava nada com as cortinas e muito menos com a mobília. Mas que era confortável, lá isso era. Precisamente na altura em que o Jeremias dá o seu mio de existência, Rute descruza elegantemente as pernas, ao mesmo tempo que se põe a jeito para o receber no seu regaço. Jeremias era um gato comum que George tinha encontrado debaixo de um carro numa vez que tinha ido a uma feira do oculto na Fundição de Oeiras. Como era preto, achou que aquilo podia querer dizer alguma coisa até porque, mesmo não acreditando, a gente gosta sempre de acreditar. O bichano não estava castrado, apesar dos pedidos insistentes de Rute para que George o fizesse o mais rapidamente possível. Ele recusava-se determinantemente e chegava mesmo a dizer que era uma mutilação e uma crueldade essa coisa de assexualizar animais cujo primeiro instinto é precisamente sexual. Ela dizia precisamente o contrário, que o animal iria ser mais feliz castrado pois de que lhe valia ter instinto sexual se era obrigado a viver dentro de quatro paredes? Havia também a Selma, uma gata comum que tinha sido de um vizinho que entretanto morrera. Mais reservada, lá aparecia ao final de algum tempo a roçar-se nas paredes e a miar cantigas de amigo. Era exageradamente gorda. Ficou assim desde que George a mandou castrar.
O jantar está pronto, anunciou George lá de dentro da cozinha.
Não era propriamente um manjar dos deuses. Nem ele tinha muita paciência para a arte do empratar. Mesmo assim, hoje tinha-se esmerado de tal forma que deixou escapar um uivo de satisfação ao mesmo tempo que contemplou a mesa posta. Rute sentou-se no banco que continuava com um dos parafusos por apertar e quase se estatelou no chão. Com uma serenidade aparente, troca rapidamente o banco pela cadeira e pega de imediato no copo cheio de vinho. Dá um longo golo. Como sempre, os jantares de George e Rute começam apenas com o barulho da mastigação. Chegam mesmo a fazer, involuntariamente, uma espécie de desgarrada de sons vindos dos dentes a moerem pedaços de tosta, do queijo a empapar-se de saliva, do pão a ser deglutido. Uma espécie de festival de barulhinhos viscosos. O vinho, esse, um reserva tinto de 2001, lá lhes ia escorrendo pelas gargantas abaixo. George tem um truque. Assim que as tremuras das suas mãos abrandassem, então era porque já tinha bebido o suficiente para ser capaz de falar. O tema, esse, como sempre, era o amor.

(continua)

3 comentários:

Unknown disse...

Amor "à la carte", portanto, e sem tremeliques nas mãos. Mas talvez a Rute devesse ter tentado explicar ao George que o amor ao tremeliques pode ser bem encantador...:o)

Não?

Ricardo S. Reis dos Santos disse...

E que tal darmos uma oportunidade à Rute?! E ao George? E aos dois?Às vezes é mesmo uma questão de paciência. As revelações, boas e más, nunca são "à la carte" ;-)

Obrigado pela leitura.

Unknown disse...

Concordo, acrescento, humildemente, a possibilidade de conseguirmos dar oportunidade a nós próprios.

A leitura, essa, é sempre interessante. Espero que não seja incomodativa, a participação...:o)