quinta-feira, julho 10, 2008

OS SEIOS DE LÍVIA AUGUSTA

Rodrigo era um homem vulgar. Aliás, demasiado vulgar para encetar uma luta corpo a corpo com aquilo que ele considerava ser uma contingência. Quando lhe diziam que precisava de se soltar mais e de deixar a timidez em casa, respondia com um ar aflito de criança culpada: Eu sou assim. E ao mesmo tempo encolhia os ombros como quem acrescentava: Mas eu sou assim mesmo. Para quem o via atravessar os corredores da Faculdade de Ciências, Rodrigo parecia ter um olhar inerte. Mas a verdade é que ninguém vê o que outro vê. E o ponto de vista de Rodrigo, aquele que era de facto posto em prática e se mostrava nos artigos que escrevia e nas palestras que dava, era um ponto de vista de quem estava constantemente a experimentar, como se estivesse de fora a ver o que sucede às coisas. Ele era um cientista. Daqueles a sério, que sabem que nada é tudo e que o mundo não passa de um acaso. Aliás, de um belo acaso. Nunca teve propriamente vontade de se sentar um dia e gritar ao mundo que ele, o mundo, foi descoberto. Para ele a luta continuava sempre. E isso dava-lhe ânimo. Acima de tudo porque achava que o mundo, o dos filmes e o dos livros, não passa de uma representação dos homens. Às vezes até bastante foleira. E, citando Newton, como sempre gostava de o fazer, costumava dizer que «o grande oceano da verdade continua por descobrir à minha frente». À nossa frente. À frente do mundo que é o que os homens precisam que ele pareça ser. Mas que não é. E costumava até dizer, com ar de gozo, que este mundo tinha a forma do grito de sobrevivência do homem do tempo, do homem primata, do homem térmita. Porque para ele, graças a Deus que Deus estava morto. É claro que toda esta concepção da vida não fazia propriamente de Rodrigo um homem muito popular na comunidade científica constitucionalizada no paradigma dos tempos modernos, que é como quem diz, dos tempos do politicamente correcto. Os seus colegas, que o achavam competente e interessante, não viam com bons olhos alguém que se recusava a ter vistas curtas em relação àquilo que eles consideravam ser tão original como aquela irrepetível sopa primitiva, isto é, um ensino superior em jeito de «serviço profissional obrigatório». Então nas reuniões do conselho pedagógico, aquilo era de bradar aos céus quando o fulano se punha a protestar com o facto de estarem todos a assistir passivamente ao enterro da ciência, da logociência, precisamente aquela que é admirável e que nos mostra os confins do universo, a evolução do homem, a origem da linguagem, o comportamento das plantas e dos animais, cheia de enigmas, principal motor do alargamento do horizonte de conhecimentos. Era trágico mas, pelos vistos, já ninguém se importava com isso. E ele não passava de um professor auxiliar, ainda por cima com um doutoramento em história das ciências feito em Harvard, daqueles que quase ninguém percebia para o que servia. Aliás, era frequente os colegas perguntarem-lhe, com ar de gozo, quando é que ele iria ser um biólogo a sério e descobrir qualquer coisa de útil, qualquer coisa que lhe valesse um artigo na Nature. Ele limitava-se a sorrir e a responder que não lhe interessava passar a vida a fazer qualquer coisa. E longe, suficientemente longe para não o ouvirem, dizia com toda a pujança: puta que os pariu. Não. Rodrigo não era um homem revoltado. Muito menos zangado com a vida. Tinha-se transformado naquilo que era. A sua vida estava nas suas mãos. E isso dava-lhe a força que ele precisava para se levantar todas as manhãs. Porque o mundo não tem a obrigação de o compensar pelos dias maus.

É claro que cada um de nós tem os seus cães selvagens a ladrar na cave. E Rodrigo também tinha. A sua relação com as mulheres era algo que esperava já há muito tempo por uma redobrada atenção da sua parte. Precisava disso como de pão para a boca. Sobretudo porque, às vezes, uma mulher, só por ser mulher consegue revelar o homem num homem. Naquele homem que não anda por aí apenas com o pénis duro à procura de uma vulva que o receba sem perguntas nem complicações. Mas sim que alucina e que vislumbra salas e quartos repletos de molduras a enquadrar aquilo que lhe parece ser uma felicidade para sempre. Uma vida cheia de glória. E que nos faça gritar por Nietzsche para lhe dizer que sim, que estamos prontos a amar a ideia de repetir eternamente a nossa vida. Era por isto que Rodrigo ambicionava. E imaginava. Mas, paradoxalmente, por isto fazia muito pouco. Lá fundo, os cães selvagens ladravam bem alto. E lembravam-lhe constantemente de Júlia, o último amor da vida de Rodrigo. E, talvez por isso, o que mais estragos fez. Rodrigo conheceu-a quando entrou para a faculdade. Eram os dois caloiros de biologia. Tinham na altura 18 anos e partilhavam um ponto de vista sobre a vida muito parecido. A sua relação polimerizou-se com a mesma vontade com que polimeriza um gel de electroforese. Aquilo funcionava. Mas funcionava mesmo. De tal forma que, quando terminam o curso, vão os dois em estágio para a África do Sul estudarem os elefantes do Sabi Sabi. É claro que acabaram por se apaixonar. E se, à partida, isso até parecia ser um bónus, depressa se revelou um embaraço. É o que acontece quando se ama mais o desejo do que o ser desejado. Rodrigo sabia que, para viver bem, era preciso desejar aquilo que é necessário e, depois, só depois, amar aquilo que é desejado. Mas quando se ama não se sabe nada. E despimos depressa as vestes que nos pesam e contamos em voz baixa todos os nossos desejos para no final suspirarmos o prazer de não estarmos sozinhos. Acontece que, para nos relacionarmos plenamente com o outro, precisamos primeiro de nos relacionarmos connosco próprios. Só quando se consegue viver como a águia, sem absolutamente qualquer público, se consegue voltar para outra pessoa com amor. Júlia e Rodrigo usavam-se um ao outro como escudo contra o isolamento. E quando se descobre isso, tudo perde sentido. Precisamente aquele tudo que era suposto ser para sempre. Descobriram isso imediatamente a seguir a uma vontade enorme de fornicarem, de tal forma que os obrigaram a parar o Land Rover e a correr com o pisteiro o mais depressa possível, ao mesmo tempo que lá longe passava uma manada de rinocerontes brancos (um dos animais mais emblemáticos de Sabi Sabi). Às vezes o sexo tem destas coisas. Logo a seguir torna-nos mais lúcidos. Como se os fluidos levassem consigo a miopia e o encantamento e a «doença» do desejo. A seguir ao sexo vemos mais claro. E sabemos logo se é com aquela pessoa que queremos estar na próxima vez. Pelo menos foi assim que se passou com Júlia e Rodrigo. Mesmo assim ainda suportaram um dia longo de trabalho, em silêncio, de um lado para o outro à procura dos trombudos. Rodrigo tinha na altura 24 anos. Sabia que isto iria fazer estragos. Os elefantes nunca esquecem. E ele também não.

(continua)

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