segunda-feira, junho 29, 2009

TANTAS VEZES

Tantas vezes me mataram. Tantas vezes ressuscitei. Tantas vezes fui feliz. Tantas vezes me matei. Tantas vezes perdi tudo. Tantas vezes ganhei nada. Tantas vezes deixei de dormir por alguém. Tantas vezes chorei à noite. Tantas vezes sorri de manhã. Tantas vezes desesperei. Tantas vezes procurei o fim. Tantas vezes comecei do princípio. Tantas vezes apanhei aquele comboio. Tantas vezes amei a mulher errada. Tantas vezes me queimei. Tantas vezes me queimaram. Tantas vezes não me compreenderam. Tantas vezes não me compreendi. Tantas vezes me abandonei. Tantas vezes sofri. Tantas vezes... tantas vezes... mas nunca vezes demais. Porque se há certeza nesta vida, é que nela TODO CAMBIA.
TODO CAMBIA

Cambia lo superficial
cambia también lo profundo
cambia el modo de pensar
cambia todo en este mundo

Cambia el clima con los años
cambia el pastor su rebaño
y así como todo cambia
que yo cambie no es extraño

Cambia el mas fino brillante
de mano en mano su brillo
cambia el nido el pajarillo
cambia el sentir un amante

Cambia el rumbo el caminante
aunque esto le cause daño
y así como todo cambia
que yo cambie no extraño

Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia

Cambia el sol en su carrera
cuando la noche subsiste
cambia la planta y se viste
de verde en la primavera

Cambia el pelaje la fiera
Cambia el cabello el anciano
y así como todo cambia
que yo cambie no es extraño

Pero no cambia mi amor
por mas lejos que me encuentre
ni el recuerdo ni el dolor
de mi pueblo y de mi gente

Lo que cambió ayer
tendrá que cambiar mañana
así como cambio yo
en esta tierra lejana

Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia

Pero no cambia mi amor...

(Mercedes Sosa)
COMO O MUNDO

Gostava que conhecesses o mundo no seu melhor e no seu pior. Não esse mundo construído em bytes. Não esse mundo fabricado em imagens televisivas. Não esse mundo vendido em agências de viagem. Não esse mundo como produto de uma vaga ideia da sua dimensão rochosa e humana. Não esse mundo que ouvimos dizer que existe. Não esse mundo que percorremos à pressa no oceanário. Gostava mesmo que conhecesses o mundo tal como ele é. Porque conhecendo este mundo, tal como ele é, no seu melhor e no seu pior, na sua diversidade e na sua multiplicidade de cores e de cheiros, e de modos de vida e de maneiras de ser, conhecendo este mundo que se mata, que se toca, que se reproduz, que se ama, que se destrói, que se odeia, que se vangloriza, que se define, conhecendo tudo isto, então estarás pronta para me entender e me amar com todo o teu coração. Vá, anda. Conhece o mundo e eu serei teu para sempre.

segunda-feira, abril 13, 2009

O ontem, o passado, não é apenas um quadradinho riscado num vulgar calendário de papel. O ontem, o passado, é o que nos dá consistência e sentido. Quando nos damos ao luxo de dizer que "foi assim que aconteceu", é porque o ontem continua a acontecer. Recordarmos esse ontem e contá-lo é o que verdadeiramente define a vida de cada um. E se prestarmos a devida atenção, é nesse ontem que também deixámos alguns momentos mais marcantes da nossa vida. Sobretudo aqueles que tiveram quase para acontecer. Deixo-vos com um episódio de uma fotonovela intitulada "Monsieur Aotourou em Lisboa, ou a metamorfose do sonho do «las bas, on était bien»", que estava a escrever em parceria com alguém de ontem. Porque há coisas que merecem ser lamentadas por nunca terem chegado ao fim.

Ao som da tua arma

Saem no Parque. Júlia sugere que regressem novamente de Metro mas Aotourou insiste para que se faça o percurso a pé.

- É só uma estação, diz ele.

Meio intimidada, Júlia resigna-se à vontade do seu cliente.

À saída da estação um bafo quente atinge-os pelas costas ao mesmo tempo que uma lufada de ar fresco os convida a sair. Aotourou desce as escadas com ligeireza e, como quem já domina a toponímia da cidade, questiona Júlia:

- Esta é a Avenida Sidónio Pais, não é? E se a memória não me falha, desemboca na Avenida Fontes Pereira de Melo.

- Estou impressionada, senhor Aotourou – retorquiu Júlia.

Aotourou esboça um leve sorriso e logo de imediato os dois iniciam a caminhada. Os sapatos de Júlia batem firmemente na calçada, produzindo um simpático som gutural e que, convenientemente, quebra o silêncio que entretanto se instalou. Aotourou aprecia cada detalhe como se estivesse a olhar para um quadro de Münch. À medida que descem a avenida, o edifício ao fundo da Semapa torna-se mais definido na forma. Quase a dobrar a esquina, a Boite Hipopótamo é denunciada não apenas pelo seu reles letreiro luminoso que pisca persistentemente mas também pela presença de um senhor barrigudo de laço preto plantado à porta. Ao dobrar a esquina, o Hotel Eduardo VII chama a atenção pelo cão de loiça preto que se vislumbra através das portas giratórias. O barulho torna-se mais denso. A voz de Lisboa é a de motores de carros. A imagem é de grandes edifícios e de muitas luzes. Luzes vermelhas dos carros que vão. Luzes amarelas dos carros que vêm. Luzes que iluminam os edifícios. Luzes que sugam os carros para um buraco de luz com a promessa de os levarem para a A5, a A2 ou então às Amoreiras. A calçada surge de repente manchada de fezes de cavalo. Desviam-se agilmente e continuam. Cruzam-se com um fulano de camisola de riscas grossas horizontais e jeans castanhos e de saco de plástico na mão, que trauteia uma canção imperceptível. A estátua do Marquês de Pombal esconde-se na noite. O Parque Eduardo VII surge de rompante, à direita, balizado por uma fileira de potentes candeeiros. A esta distância vislumbra-se os contornos da estátua. Apenas os contornos. Percebe-se que são as costas do Marquês. O som persistente de duas moedas a bater uma na outra, produzido por um grupo de miúdos sentado na relva a tarde e a más horas, é interrompido por uma gargalhada de Aotourou seguido de uma exclamação:

- Hotel Fénix!

Deste lado era já visível o perfil direito do Marquês. Ao atravessarem a Rua Bramcamp, finalmente surge a frente. Mas só por momentos. Assim que entram na lateral da Avenida da Liberdade, são eles agora que lhe viram as costas. A harmonia sonora é quebrada por uma cascata de ignições de motores dos táxis que avançam um bocadinho mais na fila na praça. Parados nos semáforos da Avenida Alexandre Herculano, um homem cabeludo e barbudo persiste no passeio central. Gesticula e fala para ninguém sobre absolutamente nada. As árvores da avenida escondem o lado de lá. O prédio de esquina da Rua Rosa Araújo com a avenida é redondo. Uma luz forte de um dos andares permite ver o magnífico tecto com uma belíssima circunferência de elementos decorativos. Um pouco mais à frente uma pala destaca-se pelas suas fileiras de luzes que iluminam a calçada, onde se lê: Hotel Tivoli. Um senhor devidamente fardado, de calça preta e casaco castanho sobre uma camisa branca e uma gravata castanha, luvas brancas e boné de pala, cumprimenta ambos.

- Bem, chegámos senhor Aotourou. Este é o seu hotel. É dos melhores de Lisboa e os quartos têm uma magnífica vista para a avenida. Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza que sim. Eu acredito em si.

Júlia tenta por um ponto final:
- Então pronto, acho que está tudo.

Mas Aotourou não deixa:
- Olhe, Júlia, amanhã vou dar uma conferência na Universidade Nova de Lisboa sobre os aspectos semióticos da obra de Denis Diderot. Teria muito gosto em contar com a sua presença.

Júlia não consegue dizer não. Qualquer coisa de estranho incitava-a a conhecer melhor este homem. Não conseguia perceber se era desejo ou apenas curiosidade. Mas estava de qualquer forma fora do seu controlo. Aotourou indica-lhe pausadamente a hora e o local, à medida que ela toma nota no seu Moleskine. Despedem-se com um aperto suave de mãos. Júlia desvia por momentos o seu olhar para as mãos de Aotourou. Ele penetra de imediato no jardim interior do hotel, devidamente acompanhado pelo porteiro e ela apanha um táxi que naquele momento passava por ali.

De regresso a casa, Júlia deu por si fixada no texto que tinha lido na contracapa do livro que o senhor Aotourou levava na mão. De olhos fechados tentava visualizar o texto mas a imagem fugia-lhe para a mão de Aotourou que segurava o livro, e da mão para o rosto, e do rosto novamente para a mão. Abre de rompante os olhos e sacode a cabeça como se os pensamentos fossem areia e caíssem assim sem mais nem menos. O taxista insiste na conversa do assalto ao banco e da culpa do governo, e vai agravando-se à medida que o tom de voz aumenta e os gestos se tornam ainda mais acrobáticos. Júlia limita-se a ouvir e de vez em quando a acenar a cabeça em demonstração de total concordância.

À passagem pelo Saldanha pede gentilmente ao taxista que buzine para que ela possa cumprir o seu ritual e acenar ao senhor de gabardina preta sobre um fato cinzento, saco de plástico na mão, óculos escuros e cabelo branco lambido, e um sorriso ingénuo a fazer lembrar uma criança em dia de aniversário que costuma estar ali bem junto aos semáforos. Como sempre, aliás, como a todos que lhe prestam a devida atenção, o senhor corresponde. Júlia sente um imediato prazer, apenas denunciado por uma acentuada contracção da comissura labial e uma aceleração fugaz do ritmo cardíaco que a obriga a forçar um pouco a respiração. Logo de imediato tudo se desvanece e ela volta a si e aos seus pensamentos.

Chegada a casa, finalmente, descalça-se, liga a aparelhagem e introduz o CD que uma amiga lhe tinha gravado. A sala é invadida por um ambiente musical. Júlia pega na capa fotocopiada do original e lê Jarabe de Palo. Agrada-lhe. A seguir veste uma t-shirt, escova os dentes e senta-se no sofá da sala. Cansada, ao fim de um certo tempo adormece.

Vindo do nada, Júlia sente uma mão a escovar-lhe o cabelo. Mesmo antes de abrir os olhos reconhece a fragrância. Deixa ficar-se um pouco mais com os olhos fechados com medo de ser quem ela achava que era. A mão toca agora a sua face, o dedo polegar percorre os seus lábios que de imediato enrubescem. A mão, aquela mão firme e quente avança agora lentamente para baixo, envolve por momentos o pescoço, toca nos seios que respondem com o intumescimento dos mamilos. A respiração de Júlia torna-se ofegante. Decide manter os olhos fechados para que todos os seus sentidos estejam entregues ao comando daquela mão que massaja cada um dos seios, intercalando com uns beliscos nos mamilos. Surgem os primeiros gemidos tímidos próprios de quem começa a gostar mesmo daquilo. No tempo certo, a mão desce ainda mais. Sente dois dedos a pressionarem por cima das cuecas a sua vagina já totalmente húmida. Os gemidos de Júlia aumentam de volume ao mesmo tempo que, com a sua mão esquerda, aperta o seu seio esquerdo. Os movimentos da púbis activam-se. As suas pernas aumentam o ângulo de abertura entre si. Ai aquela mão! Os movimentos flutuam de intensidade e de velocidade. E param. As cuecas são agora arrancadas. Júlia sabia que o melhor estava para vir. Os seus grandes lábios estavam já grandes e o seu clitóris posicionava-se em glória como se comandasse o leme. A mão, já envolvida por uma película de suco, começa por circundar o clitóris como carro em persistentes voltas numa rotunda. De seguida encontra o seu caminho de saída. Júlia solta um grito ávido assim que sente um dos dedos a penetrar a sua vagina. Uma vez e outra vez. Vezes demais para que Júlia aguentasse aquele bloom de prazer que percorria o seu corpo sob a forma de ondas. Entretanto entram já dois dedos. E o ritmo aumenta à medida que vão mais fundo. A contorcer-se e já quase a vir-se, Júlia é agitada por um som polvoroso. Parecia ter sido um tiro. Afogueada, abre os olhos. Olha à sua volta e não vê ninguém. Tinha sido um sonho. Suspira fundo. Um sonho muito real! É o que acontece quando desejamos muito. Já o deveria saber. A imaginação transmuta-se momentaneamente em realidade ao mesmo tempo que satisfaz a vontade sedenta. Embora confusa, Júlia sentia-se estranhamente satisfeita com um certo sentimento de serenidade que se apoderava lentamente do seu corpo. Toma a decisão de se ir deitar na sua cama. Assim que se levanta percebe que as suas cuecas estão molhadas. Ao tirá-las, percebe de imediato que aquilo era o suco que a sua vagina produz de cada vez que é investida pelo desejo e pela vontade de um pénis duro. Os seus grandes lábios intumescidos e o seu clitóris ainda em contracção denunciavam essa vontade. Desta vez sonoriza o seu pensamento.

- Foi tudo tão real! O que é que se passa comigo?!

Não se sentiu com forças para procurar uma resposta. Trocou rapidamente de cuecas e deitou-se. Cerrou os olhos e fez um esforço para se deixar dominar pelo sono profundo, precisamente aquele que é estéril de sonhos. Passados dezassete minutos, Júlia volta a adormecer. E assim se manteve até à hora de acordar.

R.S.

segunda-feira, janeiro 12, 2009

UMA REFLEXÃO SOBRE TUDO ISTO

«Cada vez mais penso que Portugal não precisa de ser salvo, porque estará sempre perdido como merece. Nós todos é que precisamos que nos salvem dele.»
- Jorge de Sena


Refira-se, a título de exemplo, o “campeonato de notoriedade na TV”, publicado pela SÁBADO, referente ao período de 29 de Dezembro a 4 de Janeiro. A lista é liderada pelo Presidente da República Cavaco Silva. Seguem-se depois Quique Flores, Vitalino Canas, Jesualdo Ferreira, Paulo Bento, João Jardim, José Sócrates, Cristiano Ronaldo, Ana Jorge e António Costa. Fazendo as contas, temos então nesta lista seis pessoas ligadas à política e quatro ligadas ao futebol. Política e futebol dominam assim esse tal “campeonato”. A primeira é cada vez mais odiada pelos portugueses. A segunda é a sua grande paixão que lhes injecta uma espécie de optimismo sintético. Daqui resulta que no palco mediático se desenrola desde há muito uma trágico-comédia. Na verdade, Portugal não passa disso mesmo. Uma reles deambulação entre a neurose maníaca de um jogo de futebol e a neurose deprimente de uma eleição, um debate ou um discurso político qualquer. Nesse sentido, Portugal é bipolar. Contudo, embora grande parte dos portugueses se abstenha do voto, não são capazes de se abster do comentário e do insulto. E por isso esta bipolaridade se tornou num modo de vida. Umas vezes tudo está mal, outras vezes tudo está bem. Os portugueses precisam disso. Aliás, a sua pequenez vem precisamente desta bipolaridade. Como dizia José Gil, «os portugueses gostam de ser pequeninos». É interessante o filósofo ter usado aqui o verbo gostar. Nesse sentido, os portugueses têm prazer em ser pequeninos. É quase como uma condição de satisfação. Por conseguinte, não sentem qualquer prazer na sua negação. E por isso simplesmente não negam. Conformam-se. O regime de sentido colectivo dos portugueses é então um regime de pequenez. É claro que isto tem história. E toda a gente a conhece. Não é por acaso que o título de “o maior português de sempre” (pese embora a sua irrelevância histórica) foi atribuído a Salazar. Vivemos hoje com um certo imprinting desses tempos. Mas esse imprinting torna-se mais evidente no poder político, onde se denota uma certa tendência para uma nova síntese de autoritarismo. E um autoritarismo que surge por reacção à generalização da democracia. Eu concordo em absoluto com José Gil quando este diz que Sócrates tem um projecto de carreira pessoal, mas um projecto absolutamente provinciano, na exacta medida da tal pequenez de que falávamos há pouco. E isto é muito perigoso porque surge como anódino e frívolo. José Sócrates é, do ponto de vista político, um homem muito perigoso. É que ele faz com que nada se pareça passar quando, na verdade, tudo se passa. Nalguns aspectos este governo governa “à Salazar”, em grande parte porque é um modo de governação eficaz. E toma vantagem exactamente a partir desse “nada se parece passar” para ir tecendo a sua malha. E entretanto lá surge o “engenheiro” nas varandas da vaidade prometendo que nos vai salvar de tudo, da mesma forma que noutros tempos surgia o “professor”, também de fato cinzento, exactamente no mesmo estilo discursivo. E o povo, que é uma espécie de povo-rebanho, ouve e cala. Sócrates surge então no topo das sondagens. E no entanto, tomando o pulso a esse mesmo povo no seu dia-a-dia, todos atiram pedras. O que nos falta em coragem sobra-nos em hipocrisia. A perigosidade de Sócrates vem precisamente deste aspecto. O seu discurso é escatológico mas aqui o discurso é irrelevante. É com a personagem que os portugueses se identificam. E uma identificação, como dizia José Gil, que é pessoal. Quer dizer, o senhor professor, o senhor engenheiro, o senhor doutor, surgem aqui como referências pastorais, como aqueles que sabem em exclusivo e no absoluto o que é o melhor para a gente. Eles é que sabem. Um pouco como o padre da aldeia de outros tempos. Uma amiga minha dizia-me que Sócrates é perfeito na retórica porque prende-nos à forma e abstrai-nos do conteúdo. Nesse sentido, Sócrates é eficaz. E essa eficácia pode ser medida, por exemplo, pela quantidade de Magalhães comprados. O deslumbramento com a máquina é provinciano mas é quase impossível fugir àquilo que realmente somos e gostamos de ser. Portugal é assim e vai ser sempre assim. E é precisamente por esta razão que nós todos é que precisamos que nos salvem dele.

segunda-feira, outubro 20, 2008

QUANDO ESTAMOS INVISÍVEIS E NINGUÉM É CAPAZ DE NOS VER, ENTÃO O MELHOR É RECOMEÇARMOS, SEM NUNCA NOS RENDER



Esta é a minha caricatura. Foi feita no Verão de 2008 por um daqueles artistas de rua que costumam estar na marina de Vilamoura. Não se parece nada comigo e eu, muito honestamente, fiquei desiludido. E fiquei desiludido sobretudo porque, ingenuamente, esperava que o senhor caricaturasse alguns aspectos específicos da minha maneira de ser, isto é, que lhe fugisse o lápis e marcasse a grosso o traço daquilo tudo que eu sou ao mesmo tempo. Inevitavelmente, o que esta minha caricatura mostra é aquilo que eu pareço ser, ou seja, aquilo que uma qualquer pessoa acha que eu sou quando olha para mim e me tenta desenhar. Nesse sentido, esta caricatura é uma mentira. Embora pareça verdade.

Estou aqui com toda esta conversa para dizer que, no nosso dia-a-dia, às vezes fazemos caricaturas toscas das pessoas que nos surgem pela frente, independentemente do tipo de relação que se estabeleça com elas. Na verdade, confiamos demasiado nos nossos sentidos e, por vezes, salientamos aquilo que é mais evidente (e mais fácil) pese embora a importância seja quase nula. Reparem que, na minha caricatura, o que surge salientado são os meus óculos, porventura porque era o mais evidente perante os olhos do caricaturista (e o mais fácil de desenhar). Em muitas situações o que nós fazemos na nossa vida é precisamente isto. Retratamos as pessoas de uma determinada forma, salientando este ou aquele aspecto mais evidente, e depois emoldura-se essa caricatura e diz-se em voz alta: aquela pessoa é assim. Ou seja, todos nós temos nas nossas cabeças tantas caricaturas quantas pessoas conhecemos. E adoramos catalogar e etiquetar. E, sobretudo, generalizar. Somos todos artistas uns dos outros. Nunca fomos capazes de perguntar quem és tu? e de esperar pacientemente por uma resposta.

Mas se tudo isto parece ingénuo, a coisa agrava-se quando nos apercebemos que o nosso modo de funcionamento tem por base o preconceito. Se tiverem a paciência de ler as dezenas de textos que escrevi nos últimos anos neste blogue, não importa se me conhecem pessoalmente ou não, então depressa chegarão à conclusão que o Ricardo é um tipo muito deprimido, e triste, e pessimista, e com uma visão da vida muito negativa, que fala da morte e dos desamores, e da dor, e que se farta de lamentar, e que vive num mundo cinzento, etc. Surge então a caricatura a vincar preconceituosamente os meus óculos e a minha barba cerrada. Mas o que o Ricardo é só encontra condições de expressão e de impressão na falta de nexo. Nada pior do que vivermos rodeados de pessoas que não são capazes de nos olhar e de nos ver tal como nós realmente somos. De ver e de aceitar. E o que realmente somos é, insisto, um tudo ao mesmo tempo, isto é, um tudo em que cabe o optimismo e o pessimismo, a alegria e a tristeza, a dor e o prazer, o cinzento e as cores, o amor e o ódio, a frustração e a concretização, etc. É preciso é paciência. E é quando nos apercebemos que estamos invisíveis perante os outros que surge a necessidade de recomeçar. E é por isso que este blogue termina hoje o seu tempo de vida.

Os tempos de hoje não estão fáceis. Nota-se isso em todos os domínios da nossa vida, a começar pelo frigorífico que está cada vez mais branco, e a terminar nos lamentos surdos dos nossos amigos e conhecidos. Não estamos nos nossos melhores dias e vamos continuar a não estar nos nossos melhores dias. O país, esse, agudiza a sua pobreza, e permanece sujo, desigual, excluído. Aliás, o país já não sabe muito bem o que é ser país. A educação está quase morta, a justiça está um caos, a economia está em convulsões, a saúde gangrenou, mas mesmo assim o país agita bandeiras e injecta em si um optimismo sintético na expectativa de o Cristiano Ronaldo poder vir a ser considerado o melhor jogador do mundo. As televisões entopem-nos de lixo e nós deixamos. O primeiro-ministro mente descarada e deliberadamente e nós deixamos até porque já não queremos mesmo saber. Os condomínios privados são uma coisa chique mas poucos se apercebem que isto nos mostra como o Estado já não consegue assegurar a protecção dos seus cidadãos, sentindo estes a necessidade de se protegerem. Pois, os tempos de hoje não estão nada fáceis. E os de amanhã não vão estar melhor. E eu estou seriamente preocupado com tudo isto porque é uma herança pesada, e eu tenho quatro sobrinhos muito pequeninos e espero vir a ter os meus filhos, e eles vão ter uma vida muito difícil. E estou seriamente preocupado porque eu sei que eles vão ter mesmo uma vida muito difícil. Não consigo ser psicopata. O que eu acho é que perdemos todos a nossa aptidão evolutiva e esquecemo-nos que, como dizia o filósofo britânico Cyril Joad, «a nossa obrigação é deixarmos o mundo um pouco melhor do que o encontrámos». Tornámo-nos pois nuns egoístas da merda que pensam, vêem e agem no imediato e em função das suas supostas necessidades. Aliás, o egoísmo e o imediatismo são a marca destes tempos e a todos os níveis. Podia até ser um egoísmo útil mas não é porque ninguém sabe o que quer, apenas o que não quer. A dúvida sobre se o sol nascerá amanhã é mesmo real.

Perante este quadro negro, não queria terminar sem deixar uma nota de optimismo. Para isso retomo um ensaio sobre os orangotangos escrito há já algum tempo e que, julgo eu, serve perfeitamente de metáfora para aquilo que eu quero salientar. Começava assim: A vida, sendo difícil por princípio, é na verdade mais difícil para uns do que para outros. E, por vezes, mesmo sem sabermos, tornamos essas vidas ainda mais difíceis. Mas comecemos pelo princípio. Tenho uma amiga que comprou uma casa. A sua primeira casa. É o mais banal dos sonhos embora seja cada vez mais o menos concretizável. Excepto se tivermos pais ricos ou se tivermos ganho a lotaria. Neste caso a sorte é dela. Tem pais ricos. O seu T4 no Chiado com vista para o rio Tejo é a menina dos seus olhos. Uma casa sofisticada, moderna e bem localizada que encaixa na perfeição naquilo que ela considera ser a sua «cara». Mas não se vive numa casa vazia. É fundamental recheá-la. Convidou-me para ir com ela a uma loja de móveis, uma das muitas que balizam a nobre avenida Almirante Reis. Entrámos e sentámo-nos confortavelmente em frente da vendedora da loja. A minha amiga foi pragmática. Queria ver mobiliário de sala exclusivamente fabricado em madeira da Indonésia. Comecei a ficar mal disposto. Mais mal disposto fiquei quando vi passarem-me pela frente dezenas e dezenas de catálogos de mobílias assim e assado, todas elas, claro está, feitas em madeira da Indonésia. A minha amiga lá escolheu um conjunto do mais piroso que se possa imaginar mas obviamente de acordo com a sua «cara», ou seja, na caríssima madeira da Indonésia. Caprichos?! De uma assentada só gastou o equivalente ao meu rendimento anual. O que, convenhamos, também não é difícil. Passadas precisamente duas semanas, convidou-me para ir ver a sua nova mobília colocada no seu devido lugar. Sentados na sua ampla sala, tendo o rio Tejo como pano de fundo e bem acompanhados por um garrafa de Gouvyas Vinhas Velhas, e obviamente cercados pela sua nova mobília em madeira da Indonésia, armei-me em moralista, quer dizer, armei-me em parvo, e resolvi contar-lhe a história dos orangotangos da Indonésia, precisamente aqueles que ficaram sem casa para que ela tivesse, no conforto do seu mundo, a melhor mobília que ela podia desejar. A conversa foi breve e sensata. Comecei por lhe dizer, em jeito de introdução, que os cientistas estimam que se extinguem 20 a 30 mil espécies tropicais por ano, 50 a 80 por dia, 3 por hora. E que as principais causas desta extinção em massa se deve fundamentalmente a alterações do habitat, como a desflorestação ou os incêndios. Peguei, como gosto sempre de o fazer, no exemplo do pássaro Dodó, esse pássaro feio e desengonçado que os marinheiros Portugueses descobriram nas Ilhas Maurícias quando por mares nunca dantes navegados davam novos mundos ao mundo. Aquelas ilhas nunca tinham sido exploradas. Os Portugueses foram os primeiros. Seguiram-se depois os Holandeses, os Franceses e os Ingleses. Uma das principais tarefas destes forasteiros foi dizimar a floresta porque a madeira era de elevado valor. Alguns dos pássaros nativos morreram em consequência porque não tinham qualquer forma de se adaptarem a uma vida sem árvores. Já o Dodó, esse, também uma ave, extinguiu-se doutra forma. Também por culpa do Homem. Claro. Mas mataram-nos. Comeram-nos a todos.

Das Maurícias fui directamente para a Indonésia, essa miríade de ilhas vulcânicas que todos gostávamos de visitar pelo menos uma vez na vida. Comecei por lhe dizer que a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. Pareceu-me oportuno dizer isto. E depois disse-lhe que os orangotangos ocupam duas ilhas da Indonésia: Sumatra e Bornéu. São animais absolutamente fascinantes e perfeitamente adaptados ao ambiente arborícola. Quer dizer. Andam de árvore em árvore. A 50 metros do solo. Pois é nelas que eles vivem. É a sua casa. O seu espaço. O seu home sweet home. Os orangotangos de Sumatra são mais pequenos que os de Bornéu. Isto porque os de Sumatra raramente descem ao solo por causa dos tigres. Os de Bornéu não têm essa preocupação. Por isso comem mais. E também por isso são maiores. Fixa bem isto. Os orangotangos vivem nas árvores. Em Sumatra raramente descem ao solo. Por causa dos tigres. Estima-se que actualmente nestas duas ilhas existam apenas 100 mil orangotangos (há quem conte apenas 20 mil) e daqui a 20 anos serão apenas uma memória. Estarão extintos. Porquê? Porque por esse mundo fora há milhares e milhares de primatas humanos a querer decorar a sua casa com mobília feita de madeira da Indonésia. E como eu te disse há pouco, a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. E a madeira é a madeira das árvores, precisamente as milhares de árvores que são abatidas todos os anos em Sumatra e Bornéu. Uma autêntica e trágica devastação. Em nome da predação económica. Dos tais forasteiros. Daqueles que fazem o trabalho sujo mas também daqueles que sustentam o mercado. Consumindo. Porque, afinal, são estes que puxam o fio. Como também te disse há pouco, os orangotangos vivem nas árvores. Ora, se lhes tiramos as árvores deixa de haver orangotangos. Não deixa de ser curioso que os mesmos forasteiros, que gozam da complacência das autoridades locais, ainda têm tempo para pegar nalguns exemplares e vendê-los para o estrangeiro pois há quem não se contente apenas com a madeira. No fim, restam apenas as organizações não governamentais que perante esta tragédia, que é de todos, vai fazendo o que pode. Em Bornéu a situação é dramática. Forças armadas da ONU travam diariamente uma autêntica batalha com os forasteiros armados que insistem nesta forma de ganhar o seu pão. Cerca de mil orangotangos são caçados por ano na província Kalimantán, em Bornéu, e contrabandeados no mercado negro da mesma província. Por vezes uma cria de orangotango chega a ser vendida a «clientes internacionais» por 50 mil dólares. Negócio apetitoso, não é?

O vinho acabou-se. Tive de concluir. O desinteresse dela na conversa anulou qualquer interesse que ela teria inicialmente pela minha carne. E conclui assim: nas duas horas que gastámos na loja de móveis na Almirante Reis, extinguiram-se 6 espécies. Obviamente com o teu contributo. Um contributo que, por ignorância ou por indiferença, fizeste questão de trazer para casa. Um bocado de madeira que é afinal um bocado de vida que lá bem longe deixou de ser. Longe da vista, longe do coração. Talvez seja esse o nosso grande pecado. Terminei o monólogo. O meu pressuposto estava correcto. Mandou-me dar uma curva. E eu fui. Nessa noite quase que acreditei que melhor do que um orgasmo efémero somente uma consciência tranquila. Mas mais importante do que isso é que, afinal, nós podemos sempre escolher.

Fiz-me entender?! Nós podemos sempre escolher. Seja na nossa vida profissional ou pessoal, seja no exercício da nossa cidadania, nas nossas relações de amizade ou de amor, etc. Nós podemos escolher. E é na escolha que nos sentimos livres.

A minha escolha é esta e é uma maneira de dizer:
Recomeço. Não me rendo.


May the force be with you!

Um abraço do Ricardo e até amanhã :-)

quarta-feira, outubro 08, 2008

BOAS-VINDAS AO OUTONO, AO SOM DE VIVALDI

domingo, setembro 28, 2008

MOMENTOS
Manoel de Oliveira, na Fundação Serralves