segunda-feira, abril 13, 2009

O ontem, o passado, não é apenas um quadradinho riscado num vulgar calendário de papel. O ontem, o passado, é o que nos dá consistência e sentido. Quando nos damos ao luxo de dizer que "foi assim que aconteceu", é porque o ontem continua a acontecer. Recordarmos esse ontem e contá-lo é o que verdadeiramente define a vida de cada um. E se prestarmos a devida atenção, é nesse ontem que também deixámos alguns momentos mais marcantes da nossa vida. Sobretudo aqueles que tiveram quase para acontecer. Deixo-vos com um episódio de uma fotonovela intitulada "Monsieur Aotourou em Lisboa, ou a metamorfose do sonho do «las bas, on était bien»", que estava a escrever em parceria com alguém de ontem. Porque há coisas que merecem ser lamentadas por nunca terem chegado ao fim.

Ao som da tua arma

Saem no Parque. Júlia sugere que regressem novamente de Metro mas Aotourou insiste para que se faça o percurso a pé.

- É só uma estação, diz ele.

Meio intimidada, Júlia resigna-se à vontade do seu cliente.

À saída da estação um bafo quente atinge-os pelas costas ao mesmo tempo que uma lufada de ar fresco os convida a sair. Aotourou desce as escadas com ligeireza e, como quem já domina a toponímia da cidade, questiona Júlia:

- Esta é a Avenida Sidónio Pais, não é? E se a memória não me falha, desemboca na Avenida Fontes Pereira de Melo.

- Estou impressionada, senhor Aotourou – retorquiu Júlia.

Aotourou esboça um leve sorriso e logo de imediato os dois iniciam a caminhada. Os sapatos de Júlia batem firmemente na calçada, produzindo um simpático som gutural e que, convenientemente, quebra o silêncio que entretanto se instalou. Aotourou aprecia cada detalhe como se estivesse a olhar para um quadro de Münch. À medida que descem a avenida, o edifício ao fundo da Semapa torna-se mais definido na forma. Quase a dobrar a esquina, a Boite Hipopótamo é denunciada não apenas pelo seu reles letreiro luminoso que pisca persistentemente mas também pela presença de um senhor barrigudo de laço preto plantado à porta. Ao dobrar a esquina, o Hotel Eduardo VII chama a atenção pelo cão de loiça preto que se vislumbra através das portas giratórias. O barulho torna-se mais denso. A voz de Lisboa é a de motores de carros. A imagem é de grandes edifícios e de muitas luzes. Luzes vermelhas dos carros que vão. Luzes amarelas dos carros que vêm. Luzes que iluminam os edifícios. Luzes que sugam os carros para um buraco de luz com a promessa de os levarem para a A5, a A2 ou então às Amoreiras. A calçada surge de repente manchada de fezes de cavalo. Desviam-se agilmente e continuam. Cruzam-se com um fulano de camisola de riscas grossas horizontais e jeans castanhos e de saco de plástico na mão, que trauteia uma canção imperceptível. A estátua do Marquês de Pombal esconde-se na noite. O Parque Eduardo VII surge de rompante, à direita, balizado por uma fileira de potentes candeeiros. A esta distância vislumbra-se os contornos da estátua. Apenas os contornos. Percebe-se que são as costas do Marquês. O som persistente de duas moedas a bater uma na outra, produzido por um grupo de miúdos sentado na relva a tarde e a más horas, é interrompido por uma gargalhada de Aotourou seguido de uma exclamação:

- Hotel Fénix!

Deste lado era já visível o perfil direito do Marquês. Ao atravessarem a Rua Bramcamp, finalmente surge a frente. Mas só por momentos. Assim que entram na lateral da Avenida da Liberdade, são eles agora que lhe viram as costas. A harmonia sonora é quebrada por uma cascata de ignições de motores dos táxis que avançam um bocadinho mais na fila na praça. Parados nos semáforos da Avenida Alexandre Herculano, um homem cabeludo e barbudo persiste no passeio central. Gesticula e fala para ninguém sobre absolutamente nada. As árvores da avenida escondem o lado de lá. O prédio de esquina da Rua Rosa Araújo com a avenida é redondo. Uma luz forte de um dos andares permite ver o magnífico tecto com uma belíssima circunferência de elementos decorativos. Um pouco mais à frente uma pala destaca-se pelas suas fileiras de luzes que iluminam a calçada, onde se lê: Hotel Tivoli. Um senhor devidamente fardado, de calça preta e casaco castanho sobre uma camisa branca e uma gravata castanha, luvas brancas e boné de pala, cumprimenta ambos.

- Bem, chegámos senhor Aotourou. Este é o seu hotel. É dos melhores de Lisboa e os quartos têm uma magnífica vista para a avenida. Espero que seja do seu agrado.
- Com certeza que sim. Eu acredito em si.

Júlia tenta por um ponto final:
- Então pronto, acho que está tudo.

Mas Aotourou não deixa:
- Olhe, Júlia, amanhã vou dar uma conferência na Universidade Nova de Lisboa sobre os aspectos semióticos da obra de Denis Diderot. Teria muito gosto em contar com a sua presença.

Júlia não consegue dizer não. Qualquer coisa de estranho incitava-a a conhecer melhor este homem. Não conseguia perceber se era desejo ou apenas curiosidade. Mas estava de qualquer forma fora do seu controlo. Aotourou indica-lhe pausadamente a hora e o local, à medida que ela toma nota no seu Moleskine. Despedem-se com um aperto suave de mãos. Júlia desvia por momentos o seu olhar para as mãos de Aotourou. Ele penetra de imediato no jardim interior do hotel, devidamente acompanhado pelo porteiro e ela apanha um táxi que naquele momento passava por ali.

De regresso a casa, Júlia deu por si fixada no texto que tinha lido na contracapa do livro que o senhor Aotourou levava na mão. De olhos fechados tentava visualizar o texto mas a imagem fugia-lhe para a mão de Aotourou que segurava o livro, e da mão para o rosto, e do rosto novamente para a mão. Abre de rompante os olhos e sacode a cabeça como se os pensamentos fossem areia e caíssem assim sem mais nem menos. O taxista insiste na conversa do assalto ao banco e da culpa do governo, e vai agravando-se à medida que o tom de voz aumenta e os gestos se tornam ainda mais acrobáticos. Júlia limita-se a ouvir e de vez em quando a acenar a cabeça em demonstração de total concordância.

À passagem pelo Saldanha pede gentilmente ao taxista que buzine para que ela possa cumprir o seu ritual e acenar ao senhor de gabardina preta sobre um fato cinzento, saco de plástico na mão, óculos escuros e cabelo branco lambido, e um sorriso ingénuo a fazer lembrar uma criança em dia de aniversário que costuma estar ali bem junto aos semáforos. Como sempre, aliás, como a todos que lhe prestam a devida atenção, o senhor corresponde. Júlia sente um imediato prazer, apenas denunciado por uma acentuada contracção da comissura labial e uma aceleração fugaz do ritmo cardíaco que a obriga a forçar um pouco a respiração. Logo de imediato tudo se desvanece e ela volta a si e aos seus pensamentos.

Chegada a casa, finalmente, descalça-se, liga a aparelhagem e introduz o CD que uma amiga lhe tinha gravado. A sala é invadida por um ambiente musical. Júlia pega na capa fotocopiada do original e lê Jarabe de Palo. Agrada-lhe. A seguir veste uma t-shirt, escova os dentes e senta-se no sofá da sala. Cansada, ao fim de um certo tempo adormece.

Vindo do nada, Júlia sente uma mão a escovar-lhe o cabelo. Mesmo antes de abrir os olhos reconhece a fragrância. Deixa ficar-se um pouco mais com os olhos fechados com medo de ser quem ela achava que era. A mão toca agora a sua face, o dedo polegar percorre os seus lábios que de imediato enrubescem. A mão, aquela mão firme e quente avança agora lentamente para baixo, envolve por momentos o pescoço, toca nos seios que respondem com o intumescimento dos mamilos. A respiração de Júlia torna-se ofegante. Decide manter os olhos fechados para que todos os seus sentidos estejam entregues ao comando daquela mão que massaja cada um dos seios, intercalando com uns beliscos nos mamilos. Surgem os primeiros gemidos tímidos próprios de quem começa a gostar mesmo daquilo. No tempo certo, a mão desce ainda mais. Sente dois dedos a pressionarem por cima das cuecas a sua vagina já totalmente húmida. Os gemidos de Júlia aumentam de volume ao mesmo tempo que, com a sua mão esquerda, aperta o seu seio esquerdo. Os movimentos da púbis activam-se. As suas pernas aumentam o ângulo de abertura entre si. Ai aquela mão! Os movimentos flutuam de intensidade e de velocidade. E param. As cuecas são agora arrancadas. Júlia sabia que o melhor estava para vir. Os seus grandes lábios estavam já grandes e o seu clitóris posicionava-se em glória como se comandasse o leme. A mão, já envolvida por uma película de suco, começa por circundar o clitóris como carro em persistentes voltas numa rotunda. De seguida encontra o seu caminho de saída. Júlia solta um grito ávido assim que sente um dos dedos a penetrar a sua vagina. Uma vez e outra vez. Vezes demais para que Júlia aguentasse aquele bloom de prazer que percorria o seu corpo sob a forma de ondas. Entretanto entram já dois dedos. E o ritmo aumenta à medida que vão mais fundo. A contorcer-se e já quase a vir-se, Júlia é agitada por um som polvoroso. Parecia ter sido um tiro. Afogueada, abre os olhos. Olha à sua volta e não vê ninguém. Tinha sido um sonho. Suspira fundo. Um sonho muito real! É o que acontece quando desejamos muito. Já o deveria saber. A imaginação transmuta-se momentaneamente em realidade ao mesmo tempo que satisfaz a vontade sedenta. Embora confusa, Júlia sentia-se estranhamente satisfeita com um certo sentimento de serenidade que se apoderava lentamente do seu corpo. Toma a decisão de se ir deitar na sua cama. Assim que se levanta percebe que as suas cuecas estão molhadas. Ao tirá-las, percebe de imediato que aquilo era o suco que a sua vagina produz de cada vez que é investida pelo desejo e pela vontade de um pénis duro. Os seus grandes lábios intumescidos e o seu clitóris ainda em contracção denunciavam essa vontade. Desta vez sonoriza o seu pensamento.

- Foi tudo tão real! O que é que se passa comigo?!

Não se sentiu com forças para procurar uma resposta. Trocou rapidamente de cuecas e deitou-se. Cerrou os olhos e fez um esforço para se deixar dominar pelo sono profundo, precisamente aquele que é estéril de sonhos. Passados dezassete minutos, Júlia volta a adormecer. E assim se manteve até à hora de acordar.

R.S.

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