segunda-feira, abril 14, 2008

O DIA EM QUE OS PÁSSAROS DEIXARÃO DE CANTAR

Robert não se sentia apenas cansado, naquele cansaço próprio do quotidiano que torna a gente incapaz de se lembrar que o canal que separa a Inglaterra da França se chama canal da mancha e não canal da mácula. Não. Sentia-se sobretudo cansado de si próprio. O que era estranho. Às vezes, num rasgo de vaidade literária, encontrava-se com Dante Aligheri, na sua Divina Comédia:

«No meio do caminho em nossa vida,
eu me encontrei por uma selva escura
porque a direita via era perdida.
Ah, só dizer o que era é cousa dura
esta selva selvagem, aspra e forte,
que de temor renova à mente a agrura!
Tão amarga é, que pouco mais é morte;
mas, por tratar do bem que eu nela achei,
direi mais cousas vistas de tal sorte.
Nem saberei dizer como é que entrei,
tão grande era o meu sono no momento
em que a via veraz abandonei.»


Um encontro que lhe fazia bem porque era mesmo assim que se sentia. Robert encontrava-se numa selva escura. O que lhe faltava era um sentido para a sua vida. O que lhe mordia os calcanhares era uma espécie de lucidez perante a vida. É que via claro demais. Robert sabia também que um dia os pássaros deixariam de cantar. E isso cansava-o. Porque era uma lucidez aspra e forte, tal como a selva selvagem. Às vezes apetecia-lhe abraçar-se a si próprio e ficar assim, bem apertadinho, cheirando o seu perfume misturado com o cheiro a alho, à espera de Godot. E enquanto isso, só para passar o tempo, enforcar-se num ramo de uma «cola de caballo grande» qualquer lá para os lados da Costa Rica, onde estas plantas crescem como se fossem árvores, e pingar a terra com o seu esperma, precisamente aquele pedaço de terra onde irão depois nascer montes de mandrágoras. E assim, enquanto esperava, sempre se podia entreter a arrancá-las e a ouvir os seus gritos fatais mas que não o incomodavam minimamente porque Robert sabia que, se um dia os pássaros deixarão de cantar, então as mandrágoras também. E isso sim é que lhe revolvia as entranhas e o atirava para uma luta corpo a corpo consigo próprio, num beco, no mesmo beco de sempre. E Robert estava cansado desse beco e dessas lutas. Para os outros, não tinha motivo nenhum para se sentir infeliz. Ele insistia que não era infeliz que se sentia. Mas sim cansado. Só isso. Cansado. Mas um cansaço entranhado na pele. Na alma. Mesmo assim, para os outros, e, em certa medida, até para ele, não tinha motivos. Reparem. Fez o doutoramento na Sorbonne, donde trouxe aquele ar de quem passa grande parte do dia a dizer poemas de amor junto do rio Senna. Fazia duas viagens por ano, uma europeia e outra intercontinental. Recebia muitos e-mails, o seu gabinete na faculdade estava sempre cheio de gente, dava muitas aulas, publicava muitos artigos e escrevia muitos livros, tinha muitos amigos, ia a muitos jantares e concertos e, sobretudo, tinha o amor da sua vida sempre bem juntinho de si e que lhe soprava palavras doces no ouvido. Porém, sentia-se cansado de si próprio. Às vezes dava por si a trautear, entre dentes, estes versos:

«Não há forças na minh’alma.
P’ra sozinho andar p’la Terra…»

Outras vezes Robert era assolado por uma vontade incontrolável de ir até ao Taiti e procurar vorazmente o ancião de Diderot, para o ouvir dizer: «Enfia-te, se quiseres, na floresta obscura com a companheira perversa dos teus prazeres, mas deixa aos bons e simples Otaitianos reproduzirem-se sem vergonha, à face do céu e no dia claro». Às vezes desejava apenas que não existisse amanhã. É que sem amanhã não haveria angústia. Sem amanhã Robert seria como as aves que, por mais que voem, chegam sempre no mesmo dia.

Uma vez uma colega da faculdade virou-se para ele e disse-lhe: «Se tens problemas vai ter com a tua mãe. Para que é que servem as mães?» Ele limitava-se a ouvir. Não tinha sequer coragem de lhe dizer que estava enganada, que éramos todos órfãos existenciais. E, além disso, nem toda a água acalma a nossa sede. É claro que há pessoas que pensam que a vida vale a pena pelas coisas boas que aconteceram. Só que, lá está, mais uma vez é água que não acalma a nossa sede. Porque tudo é tão pouco. E se a vida é o que é, é porque a gente não pensa. E não opta. E não faz. E isso cansa.

Insisto. Robert não se sentia apenas cansado, naquele cansaço próprio do quotidiano que faz até com que Deus perca por momentos a sua omnisciência e diga ao bonobo que se vá embora porque ele não é um animal que possa ter uma cauda, porque ele é um homem. Não. Sentia-se cansado de si próprio. E de tudo aquilo em que tinha começado a transformar-se no preciso momento em que nasceu. E lhe vestiram umas coisas que lhe ficam curtas. E lhe prometeram que tudo é para sempre.

Pois. Robert não se sentia apenas cansado, naquele cansaço próprio do quotidiano que nos faz inventar uma desculpa qualquer para não fazer amor com o nosso amor pura e simplesmente porque não somos capazes de por o pénis duro. Não. Sentia-se cansado de si próprio. Da promessa de si. Da experiência de si. E do mundo lá de fora que não avança, que apenas promete e insinua.

«Sim, farei…; e hora a hora passa o dia…
Farei, e dia a dia passa a mês…
E eu, cheio sempre só do que faria,
Vejo que o que faria se não fez,
De mim, mesmo em inútil nostalgia.»

Farei, farei… Anos os meses são
Quando são muitos-anos, toda a vida,
Tudo… E sempre a mesma sensação
Que qualquer cousa há-de ser conseguida,
E sempre quieto o pé e inerte a mão…

Farei, farei, farei… Sim, qualquer hora
Talvez me traga o esforço e a vitória,
Mas será só se mos trouxer de fora.
Quis tudo – a paz, a ilusão, a glória…
Que obscuro absurdo na minha alma chora?»


Sim, era isso. Robert não queria ser mais o homem marçano de Álvaro de Campos que dorme o sono, que come comida, que bebe bebida, e por isso é feliz. Queria escolher o que ser. Queria inventar-se do princípio. Constituir a sua existência num regime de sentido escolhido por si. Chutar para fora da sua alma (o que quer que isto queira dizer!), esse obscuro absurdo que mói e que cansa. Percorrer um caminho longe do vale de sombras. E percorrer esse caminho levando consigo «o espinho essencial de ser consciente» como dizia, mais uma vez, Álvaro de Campos.

E, para isso, Robert tinha um plano.

(continua)

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