segunda-feira, abril 21, 2008

ESSES TEMPOS COLONIAIS:
DA ESTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE À ESTAÇÃO DO ROSSIO











De cada vez que os meus avós vêm cá passar uns tempos connosco, o meu avô cumpre sempre uma espécie de ritual de, um dia, ir ao Rossio almoçar com uns amigos dos tempos em que trabalhavam todos nos caminhos-de-ferro de Moçambique. Nunca falha uma visita. Nunca. Também nunca lhe pedi para o acompanhar. Não que não tivesse vontade de o fazer mas sempre entendi que o meu lugar nas histórias dos meus avós e dos meus pais (naquela parte em que eu ainda não existia) é de espectador privilegiado. O que faz com que eu próprio possa construir uma história à minha medida, fiel aos meus sonhos e aos meus pesadelos, à minha interpretação dos factos, aos meus afectos e às minhas vontades. Ao fim e ao cabo, a minha história. É por isso que pouco me interessa, enquanto filho e neto desses tempos coloniais, as conversas que acontecem no Rossio. Para mim, a magia desses tempos começa precisamente no facto de eu não lhes pertencer mas de eles me pertencerem. O que parece estranho e até paradoxal. Quase esquizofrénico. Há sempre uma parte de nós pronta a ser interpretada à luz de uma cosmogonia sobre uma terra imaginária, uma espécie de terra-do-nunca. Mas que é nossa. E essa parte, imbricada nas nossas experiências quotidianas do nosso ontem, do nosso hoje e do nosso amanhã, é que polimerizam aquilo a que chamamos, com alguma solenidade, «a nossa história». Além disso, a imortalidade, a única possível, é precisamente essa leitura dos nossos antepassados a partir do presente. Nesse aspecto, estamos sempre perante uma história do presente. Aliás, a única que nos interessa, que me interessa enquanto filho e neto desses tempos coloniais. Porque a imortalidade, a única possível, é a nossa existência tal como ela é recordada, e as âncoras que ela lança ao passado dos outros, daqueles que são ou que foram nossos pais, nossos avós, nossos bisavós. E âncoras que promovem ao mesmo tempo uma corrente de sentido e de identificação e de unidade. É claro que sinto muito a falta de meu pai e que me sinto muito órfão desde que ele se tornou pó e cinza. Mas reconforta-me, alegra-me até o facto de eu ser a sua imortalidade, uma circunstância temporal que fará com que ele nunca venha a tornar-se em nada.

Quanto aos métodos, esses, obedecem apenas à contingência da vontade. É sempre bom uma leitura contextualizadora desses tempos mas apenas necessária a isso mesmo, à contextualização. Mais do que isso é sobrepor a história universal (a história do que parece ser) à história do homem (a história do que é como é). Sim, uma história dos homens vulgares, daqueles que comem comida, que bebem bebida, que sujam as mãos, que cospem no chão, que fazem filhos, que casam, que matam, que amam, ao fim e ao cabo, que fazem as coisas acontecer porque eles próprios são o acontecimento. O meu método é, então, uma intermitência entre as imagens reais (das fotografias que vejo, das conversas que oiço, etc.) e as imagens imaginárias desses tempos. Imagens essas com as quais vou provocando a minha «arte» de pensar. Sim, nunca pedi ao meu avô para o acompanhar. Nunca fiz essa viagem. Mesmo tendo-o acompanhado de todas as vezes. Na minha imaginação. E isso, para mim, enquanto filho e neto desses tempos coloniais, basta-me, por enquanto, para contar a minha história.

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