quarta-feira, outubro 24, 2007

DAS VÍSCERAS, NEM BONS SONS NEM BONS VENTOS

Partilhamos com os urubus pretos uma estranha mania de reprimir socialmente o sexo em público. Na verdade, se dois urubus forem apanhados a dar uma valente queca num pouso qualquer, são imediatamente apedrejados pela comunidade. Perdemos há muito a liberdade para nos dedicarmos ao pleno fornicanço sem qualquer tipo de preconceito, sem qualquer tipo de restrição, sem qualquer tipo de puritanismo. Tudo isto deu lugar, como seria de esperar, a muitas frustrações, a muitas erecções discretas entusiasmadas por uma queca imaginária com uma determinada pessoa sentada à nossa frente no Metro que nem sequer conhecemos. O desejo, a vontade, precisamente aquela que nos leva a ter que parar o carro onde quer que seja porque a vontade já atingiu um ponto sem retorno (haveria tanto para dizer sobre o ponto sem retorno!), são fragmentos dessa natureza demoníaca que é o animal humano que conhecemos muito bem porque está bem entranhada na nossa pele. A verdade é que, em muitos casos, estabelecemos uma autêntica luta corpo a corpo de forma a purgar essa nojice que é a vontade de fornicar em público. Bom, tudo isto para dizer que me apercebi muito recentemente duma outra situação em que essa mesma luta se desenvolve. Custa-me ter que deixar de falar de sexo mas agora a conversa é com as nossas vísceras. Lamento!

Que as nossas vísceras fazem barulho é algo de profundamente banal uma vez que todos, mas mesmo todos, sem uma única excepção, fomos contemplados com essa aparelhagem. O estômago ronca de cada vez que está vazio. Os intestinos revolvem-se e chiam à medida que os gases se vão formando, que aquela papa prestes a tornar-se em fezes avança um pouco mais impulsionada pelos próprios movimentos peristálticos do intestino. Tudo isto é natural e tudo isto acontece com muita frequência. São os sons próprios das nossas vísceras que nos ajudam a ter a certeza que estamos vivos. OK, tudo bem. Todos nós sabemos isso. Agora, por favor, tentem explicar-me por que carga de água é que encetámos uma luta quase colectiva com as nossas vísceras? É que eu vejo gente à minha volta desesperada por suster um qualquer som orgânico, quase a suplicar para que o estômago não ronque ou o intestino não chie. A razão é simples. Não fica bem estarmos numa sala de espera, numa conferência, ou seja lá onde for que agregue mais que duas pessoas, com as nossas vísceras a sonorizarem a sua existência. Mas o problema agrava-se ainda mais pois quanto mais desejamos que aguentem a sua revolta totalmente despropositada, mais nervosos ficamos e mais sons as desgraçadas das vísceras produzem. Cruzam-se pernas, descruzam-se pernas, cruzam-se os braços e apertam-se com força contra o estômago, muda-se milhares de vezes de posição na cadeira, procuram-se barulhos que disfarçam os sons das vísceras (abre-se o fecho do estojo, mexe-se na carteira, tosse-se, etc.). Mas tudo piora quando, já totalmente desconcentrados e desatentos àquilo que nos levou estar ali, olhamos para o relógio e ainda faltam vinte minutos. O nervosismo aumenta e os sons das vísceras também. O receio de se parecer nojento está latente pois qualquer som orgânico é de imediato conotado pelas massas com a soltura de gases, daqueles, esses sim, despropositados e muito pouco simpáticos ao olfacto. Aos sons mais proeminentes há sempre alguém que não conseguirá conter um risinho maldoso a insinuar uma porcalhice qualquer que, afinal, não passa de uma manifestação de vida por parte das nossas vísceras. Porém, levamos essa luta muito a sério, tão a sério que às vezes damos por nós a esboçar autênticas estratégias que falham sempre. Esta luta é de corpo a corpo e é simbólica da forma como, tal como no sexo, por uma questão social, isto é, daquilo que se entende por como se deve comportar socialmente, lutamos contra aquilo que somos para parecermos aquilo que uma entidade social muito, muito abstracta acha que devemos ser. É caso para dizer que das vísceras, nem bons sons nem bons ventos. O problema, insolúvel, é que elas estão dentro de nós e, por isso, só há mesmo que aguentar. Experimentem andar sempre com uma garrafinha de água e de cada vez que acham que o estômago vai roncar, zuca com um golo. Tem é a desvantagem de, ao final de 15 minutos, a vossa bexiga dar sinal de existência farta. Ou então...

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