segunda-feira, novembro 12, 2007

PREVENÇÃO RODOVIÁRIA. UMA CRETINICE.

Mas é que já não há mesmo paciência.
De cada vez que se fala em prevenção rodoviária, eu fico com os cabelos em pé. É o exemplo mais-que-perfeito da absoluta cretinice com que essa identidade - o Estado - nos brinda. Uma total e insuportável cretinice.


O recente acidente da A23 veio dar um novo fôlego à indignação das massas e, sobretudo, uma nova tarefa às carpideiras de serviço. Lamentam-se os mortos, cuidam-se dos feridos porque amanhã é outro dia. Aliás, o que me preocupa verdadeiramente é precisamente o amanhã. Os responsáveis governamentais logo se apressaram a anunciar mais um punhado de medidas por forma a parecer que estão realmente empenhados em resolver de uma vez por todas o problema da sinistralidade nas estradas portuguesas. Uma dessas medidas, talvez a mais importante, na opinião de quem a propõe, consiste na aquisição de mais alcoolímetros e radares de controlo da velocidade, tudo muito bem embrulhado no pacote do "basta de acidentes" e sob o pretexto sagrado da prevenção rodoviária. Ora, tudo isto é pura e simplesmente uma cretinice. Em nome de uma prevenção (que por si só parece justificar qualquer medida sem uma única interpelação) implementar sistemas cujo objectivo primário é ganhar dinheiro, não passa de uma cretinice. É o caso dos radares implementados na cidade de Lisboa. São sobretudo uma fonte de rendimento para o Município e para o Estado. Tudo em nome da prevenção, claro está. Oiçam lá, se alguém estivesse realmente preocupado numa prevenção séria e eficaz, então os radares estavam escondidos, víamos mais polícias nas ruas, os imbecis não teriam todos licença de condução, os carros não seriam tão desportivos como são, as estradas não seriam tão más como são. Agora, de cada vez que há um acidente mais ou menos grave, virem para a televisão dizer que é uma tragédia e porque é uma tragédia vai-se espalhar por aí mais radares para os condutores terem medo daqueles écrans luminosos que nos dizem que se ultrapassarmos aquela velocidade nos próximos 50 metros, somos fotografados, é pura e simplesmente uma cretinice. Tudo isto é elevado ao cubo quando nos dizem, com ar grave, que se vai espalhar por aí uma dúzia de cartazes e pôr no ar um spot televisivo a ver se as pessoas se auto-penitenciam e amanhã, a caminho do trabalho, sejam os melhores condutores do mundo, independentemente de continuaram a serem uns imbecis, de terem um carro todo desportivo com o velocímetro de fundo branco a mostrar-lhe até onde ele é capaz de ir por forma a impressionar o do lado, de terem provocado um acidente há uns tempos atrás, de terem feito uma dúzia de manobras perigosas nos últimos dias. O problema é que, amanhã, ninguém vê.

Pois.
Ninguém vê a publicidade extremamente agressiva com que as marcas de automóveis apresentam os seus mais recentes modelos (o BMW tão veloz como um caça ou o CLIO tão rápido como uma bala), correspondendo assim aos fetiches mais profundos da natureza humana, porque assim vendem mais, e porque vendem mais, ganham mais dinheiro, as marcas e o Estado, que até faz dupla tributação.

Ninguém vê um cuidado por parte do poder local e central na efectiva manutenção das estradas, não somente com o pavimento mas também com a sinalização. Há estradas, dentro das localidades, que são autênticos caminhos de cabras, com passadeiras pintadas no chão mas sem a devida sinalização vertical, por exemplo. Aliás, este caso das passadeiras é exemplar da forma como a incompetência é regra e não excepção. Vejamos. Os peões não são obrigados a saber o Código da Estrada (na verdade, nem os condutores o sabem). E o que o código diz é que toda a sinalização horizontal só é válida se estiver acompanhada da respectiva sinalização vertical. Quer isto dizer que um STOP pintado no chão só é válido se estiver acompanhado do STOP vertical. O mesmo é válido para as passadeiras. Só são realmente passadeiras se estiverem acompanhadas do respectivo sinal vertical de PASSAGEM DE PEÕES. Como dizia, os peões não sabem disto. E quando vêem uma riscas brancas pintadas no chão, consideram aquilo realmente uma passadeira. Ora, se, eventualmente, alguém for atropelado numa passadeira que não estava acompanhada de um sinal vertical, de quem é a culpa? Do condutor não é porque o sinal não estava lá a indicar a passagem. Do peão também não porque as marcas da passadeira estavam lá. Ou seja, a culpa é de quem não faz as coisas como deve ser, ao fim e ao cabo, de quem nos anda a enganar. Esta questão da sinalização pode não estar na origem de muitos acidentes mas é simbólico da forma como o descuido é total quanto à sinalização.

Ninguém vê a quantidade de imbecis que se inscrevem nas escolas de condução sem qualquer competência para conduzirem um veículo mas que, mesmo assim, por um sistema de acreditação totalmente cego, com aulas práticas de condução cuja finalidade é ver se conseguem manter o carro sempre juntinho à direita, se conseguem estacionar entre dois carros e se conseguem fazer a inversão de marcha correctamente, vão para casa todos contentes porque já têm a carta. O que fazem com ela no dia seguinte já não é problema das escolas de condução. Desde que paguem, está tudo bem.

Ninguém vê as múltiplas infracções muito graves que se praticam todos os dias porque a prioridade das polícias é monitorizar, confortavelmente sentados a uma secretária de uma sala cheia de monitores, os radares espalhados pela cidade por forma a garantir que os distraídos (que naquele momento passam à qualidade de transgressores muito perigosos) sejam mesmo fotografados e recebam mesmo a multa em casa. Ou então porque a prioridade nacional é dar uma lição de morte a essa gentalha extremamente perigosa que estaciona o carro desprezando o parquímetro e que depois se depara com um bloqueio, fica horas à espera que uns fulanos de fato-de-macaco verde (quais cobradores de fraque!) façam o favor de desbloquear o que não é deles e que ainda tomam a liberdade (devidamente concedida pela lei) de caçarem a carta de condução e os documentos do carro até que a multa seja devidamente paga. Para as autoridades, estes infractores são os primeiros patifes que devem ser denunciados e combatidos porque estes sim, ao não porem a moedinha no parquímetro, estão a pôr em causa a segurança de todos os condutores. É isso mesmo. Patifes! Claro está que o facto de as autarquias lucrarem com este negócio é pura e simplesmente secundário. (Cretinos!)
Ninguém vê a falta de coragem legislativa para criar leis realmente eficazes mesmo que duras. Não deixa de ser simbólico que, com a extinção da Direcção-geral de Viação, a preocupação esteja centrada nos milhões de euros em contra-ordenações prestes a prescrever.
Ninguém vê a falta de interesse em estudar séria e cientificamente o problema, que pede uma abordagem multidisciplinar, como também ninguém vê que os relatórios sobre prevenção rodoviária, precisamente aqueles relatórios sérios que põem a nu as fragilidades do sistema e aponta algumas soluções, naturalmente dispendiosas, mas que ficam na gaveta dos ministros tutelares.

Ninguém vê que nas escolas a prevenção rodoviária pura e simplesmente deixou de existir e que as crianças, coleccionando cromos de carros velozes ou aventuras ensaiadas pelos pais, vão alimentando, como sempre aconteceu, esse gostinho por carros desportivos de forma a impressionar a miúda lá do bairro ou a fazer inveja ao grupo de amigos.
De facto, ninguém vê nada disto.
Mas é tudo isto que, daqui a uns dias, vai permitir, por negligência, que um outro acidente mate mais gente e aí, então, as televisões mostram as imagens que nos farão enraivecer pelo país que temos mas dando pouca importância ao nada que fazemos para que seja de outro modo.
É, pura e simplesmente, uma cretinice, prestes a tornar-se colectiva.
Uma verdadeira prevenção deveria tirar das estradas os condutores imbecis em vez de os identificar (sabe-se lá com que critérios) com selos às cores ao mesmo tempo que lhes sacam uma dúzia de notas.
Uma verdadeira prevenção deveria colocar nas ruas mais polícias especialmente vocacionadas para detectarem condutores imbecis e não simplesmente distraídos que iam a 56 Km/h numa zona de 50.
Uma verdadeira prevenção deveria estar empenhada em compreender a dinâmica do trânsito e a psicologia do condutor.

Uma verdadeira prevenção deveria implementar um crivo mais fino nas escolas de condução, aumentando o grau de exigência ou até mesmo o tempo de aulas por forma a garantir uma aprendizagem suficientemente sólida. Por exemplo, não há nenhum treino quanto à condução em alta velocidade (por exemplo, em auto-estrada) bem como em condições adversas. Um recém-encartado facilmente se estampa num piso molhado porque estava na dúvida se o livro que tinha lido dizia para, naquelas condições, travar ou não travar.
Uma verdadeira prevenção deveria implementar um sistema de inspecção periódica do condutor, à semelhança do que acontece para o carro, com o objectivo revalidar a sua habilitação de condução, sobretudo com base em exames médicos, bem como de actualização do Código da Estrada e todas as demais normas reguladoras.
Uma verdadeira prevenção deveria incentivar os condutores a frequentarem cursos práticos de condução em condições adversas, à semelhança do que muitas marcas por aí organizam, ao mesmo tempo que promovem os seus últimos modelos com que podem fazer tudo aquilo que aprenderam ali.
Uma verdadeira prevenção teria coragem suficiente para dizer ao tipo que entrou em contramão numa auto-estrada, por exemplo, "desculpe, mas o senhor não pode mais conduzir um veículo automóvel".
Uma verdadeira prevenção teria a coragem suficiente para dizer aos fabricantes de automóveis que assim não. Não podemos, por um lado, fazer a apologia do condutor responsável e muito certinho, ensinando-lhe toda a catequese da segurança activa para depois lhe pôr nas mãos uma autêntica bomba, toda TDI e cheia de cavalos, que dá muito mais do que aquilo que se deve e ainda por cima é cool fazer isso. Por favor, expliquem-me o seguinte mas como se eu fosse mesmo muito, muito burro. Se, como dizem, o principal problema da sinistralidade rodoviária é o excesso de velocidade, porque é que os carros chegam facilmente aos 180? Porquê? Será que o problema é MESMO o excesso de velocidade? Por outro lado, como se permite que saiam cá para fora carros que são autênticas caixas de fósforos mas que andam como o diabo a troco de um airbag lateral e frontal? Será que, o que interessa é mesmo vender não somente para agradar a indústria mas também para reanimar a dupla tributação? Será?
Uma verdadeira prevenção deveria preocupar-se mais na manutenção das estradas e da sua sinalização, concebendo-as com responsabilidade e competência, iluminando muito bem as zonas de passagem de peões, por exemplo (para mim é sempre um sufoco quando me aproximo de passadeiras em ruas sem qualquer tipo de iluminação).
Uma verdadeira prevenção deveria preocupar-se menos com as estatísticas e com o montante arrecadado em contra-ordenações e mais com a... prevenção.
Em suma, uma verdadeira prevenção nunca seria uma cretinice.

Se continuarmos a achar que o problema é exclusivamente o excesso de velocidade e o excesso de álcool, então vamos continuar a lamentar as vidas perdidas num dia, para logo no outro a seguir continuarmos a nossa vida dando graças a Deus por não ter sido ainda a nossa vez. Porque, mesmo sabendo que não é verdade, a gente gosta sempre de acreditar que estas coisas só acontecem aos outros. Enquanto isso, o Estado lá vai equilibrando os seus défices à custa de uma prevenção rodoviária que é uma absoluta cretinice. Disse.

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