terça-feira, agosto 14, 2007

SOCIEDADE DA SOLIDÃO (1)

Um quadro de Pedro Charters, Gente 2 - Acrylic/Canvas (120x90)

O comboio parte da linha 4 do Cais do Sodré exactamente às 22:30. Dez minutos antes, a carruagem foi-se enchendo de gente, de cheiros, de barulhos, de corpos. Gente carregada com sacos e malas e o cansaço do dia. Gente aos pares que fala entre si sobre coisas da vida. Gente só que fala ininterruptamente ao telemóvel. Gente que cerra os olhos. Gente de headphones, mumificada, alheada, distante. A primeira paragem é Santos. A esta hora não há rápidos. Pára em todas. Por vezes ficamos com a sensação que estamos a caminho do purgatório. Mas não. O mais longe onde este comboio vai, esta noite, é Cascais. Não me apetece ler. Não me apetece ir buscar o meu iPod à mochila. Experimento olhar o mar. A janela devolve-me a imagem do comboio cheio de gente, de cheiros, de barulhos, de corpos. Só me resta olhar essa gente. É o que faço. Ao princípio limito-me a olhar sem ver. É tudo muito opaco. Aqui, uma senhora senta-se a meu lado e passa a viagem toda a certificar-se que a perna dela não toca na minha, que o braço esquerdo dela não toca no meu braço direito. Ali, um tipo com ar de executivo de regresso a casa com uns headphones sentado em frente de um outro tipo agarrado à mochila e também com headphones. Acolá, um rapaz aguarda a próxima paragem. Segura um saco desportivo. Dos ouvidos saem dois fios. Mais um com headphones. À minha frente um tipo de boné preto, barba russa, fala alegremente ao telemóvel. Ao mesmo tempo que fala olha pela janela. O que ele vê é o interior do comboio. Evita sempre o olhar directo. Como se ninguém percebesse que o faz propositadamente! Termina a chamada. Põe os headphones, fixa o olhar no livro que entretanto sacou da mochila. Do outro lado um tipo mexe no telemóvel, como se estivesse a escrever uma mensagem. Percebe-se que não. Carrega demasiadas vezes na mesma tecla. Percebe-se então que "navega" pelo menu do telemóvel. O seu olhar está fixado naquele minúsculo ecrã como se tivesse vida. Como se fosse vida. Provavelmente espera que alguém lhe ligue. Provavelmente não tem ninguém a quem ligar. Lá à frente uma senhora fala ao telemóvel e outra também. Lá a trás um punhado de gente olha pela janela o interior do comboio. E vêem-se umas às outras como se a realidade que as rodeia estivesse a ser projectada numa tela. O corredor desta carruagem é atravessado por diversas vezes à medida que os destinos se vão cumprindo. E eu ali estou, no meio desta gente a olhar para esta gente. Não me apetece ler. Não me apetece ir buscar o iPod à mochila. Não me apetece ser como toda a gente é. Apetece-me pensar. Por exemplo, os tipos com headphones fizeram-me pensar: engraçado, caminhamos mesmo para uma sociedade da solidão! Uma solidão estranha, bizarra, maquiavélica. Uma solidão da multidão. Uma solidão no meio da multidão. Gente que anda como John Cleese, com passos de silly walk numa burocracia que lhes retira individualidade e poder. Exactamente como Kafka tinha previsto que os homens do século XX iam ser. E continuam a ser no século XXI. Gente que fica em pé para não ter de se sentar ao lado de gente. Gente que liga o telemóvel quando entra no comboio e o desliga quando sai. Gente que tapa as orelhas com headphones e se torna surda perante o mundo real porque não suporta ouvir os barulhos que gente real faz. Gente que vê o interior do comboio reflectido na janela porque não consegue encarar olhos nos olhos a gente que vai dentro dele. Gente que se desliga deste mundo feito de carne, que naquele momento partilha uma carruagem, um espaço, um tempo, e usa todos os subterfúgios para se desligar de qualquer maneira de tudo isto. Gente empacotada em si própria a julgar que os outros não fazem sentido para ela. É isto… é isto que vamos ser no futuro. Que estamos a ser no presente. Uma sociedade da solidão. Uma sociedade que não reconhece os seus conspecíficos. Que se afasta deles. Que se isola deles. Que não estão com eles mesmo estando ao lado deles. Mesmo falando com eles. Uma sociedade da realidade virtual. Uma sociedade sem espontaneidade, sem natureza, sem verdade. Uma sociedade que chora pelo que vê na televisão. Aliás, uma sociedade cuja consciência não passa de um subproduto dos media. Uma sociedade que se comove com a pobreza e o sofrimento e a fome que vê na televisão, que lê nos jornais, e que ajuda ao mesmo tempo que se entretém. E depois muda de canal. É isso mesmo. Uma sociedade da solidão. Próxima paragem: Carcavelos. É o meu destino para esta noite. Saio do comboio, juntamente com mais um punhado de gente. À saída da estação dá-se uma debandada geral. De repente já não há gente, nem barulho, nem cheiros, nem corpos. A estação recupera o silêncio. Uns sobem a rua em passo acelerado. Outros entram dentro do carro, sozinhos, trancam de imediato as portas, ligam o rádio e são de imediato sugados por uma espécie de tubos de tráfego. Querem chegar o mais depressa a casa. Pelo caminho cruzam-se com outros carros mas o que vêem são coisas com luzes conduzidos por gente que vê o mesmo. Chegam a casa. Estacionam o carro. Esperam que o vizinho do 5.º andar suba. A luz das escadas apaga-se e não se acende durante 20 segundos. É o sinal de que o caminho está livre… de gente. Entram em casa. Trancam-se. Fecham as janelas. Ligam a televisão. Choram com as notícias do telejornal. Insultam as personagens da telenovela. Chegam a desejar-lhes morte. Ligam o computador. Falam com os amigos através do Messenger. Enviam uns e-mails. Surfam pela net. Jogam o Second Life. Vêem pornografia. Masturbam-se, às vezes sim às vezes não. Vêem mais um pouco de televisão. Dão de comer aos gatos. Dizem-lhes que eles são a coisa mais preciosa dos donos. Beijam-nos. Vestem o pijama. Deitam-se. Juram para si próprias que são muito felizes assim e que são aquilo que sonharam sempre ser. Esboçam um leve sorriso. Precisamente aquele sorriso de quem acaba de enganar alguém. E consegue. Dormem. Continuam sozinhos. Fazem tudo para estarem sozinhos. Querem estar sozinhos. No meio da multidão. É esta a sociedade da solidão. E é nossa. À partida parece que a imagem do comboio a caminho do purgatório, cheio de sombra de gente que nem sabe dizer como é que ali entrou nem se quer sair, nos leva muito longe da realidade. Na verdade, nunca estivemos tão perto.

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