quarta-feira, agosto 22, 2007

METAFÍSICA DO AMOR (1)


Tenho uma profunda admiração por Arthur Schopenhauer (1788-1860). Definido quase sempre como um pessimista insuportável e, talvez por isso, odiado por muitos, o seu pensamento tendia a montar uma filosofia da vida, concreta e algo profética. Tive a oportunidade de, recentemente, ler um pequeno texto deste autor intitulado precisamente Metafísica do Amor, e que faz parte de uma obra maior, O Mundo como Vontade e Representação, publicada em 1818. É um texto absolutamente delicioso que vale a pena ser lido e comentado. Vejamos. A páginas tantas, Schopenhauer escreve o seguinte:

«Enfim, verifica-se em cada ano diversos casos de duplo suicídio, quando dois amantes desesperados se tornam vítimas das circunstâncias que os separam; verdadeiramente, nunca consegui compreender como é que dois seres que se amam, e julgam possuir nesse amor a suprema felicidade, não preferem romper violentamente com todas as convenções sociais e sofrer toda a espécie de males, a abandonar a vida com renúncia de uma felicidade além da qual nada podem imaginar

Ora, isto só pode significar que o amor, perante as convenções sociais, perde. E perde descaradamente. E é triste porque deita por terra essa ideia romântica que temos de nós próprios enquanto espécie que ama genuinamente. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Mas será que mudou assim tanto? Se pegarmos no exemplo dos nossos pais e dos nossos avós, vemos que alguns deles fugiram de casa para se casarem com quem amavam (se foram ou não felizes para sempre é outra história). Essa era também uma forma de rompimento com as convenções sociais. Não é pouco comum encontrar, ainda hoje, famílias desentendidas por tais acontecimentos. Mas vamos lá ao que interessa. Hoje, as coisas não são muito diferentes. Primeiro temos de ver que os filhos, sobretudo as filhas (não haja ilusões), são vistos como “propriedade” dos pais. Aliás, a própria lei assim o determina o que faz com que seja essa a convenção social constitucionalizada. «Eu é que mando» é uma expressão típica de um pai para um filho. Não sei precisar quando mas há uns tempos colei os meus olhos à televisão para ver The Simpsons. E nesse episódio, depois do filho Bart descobrir que o pai Homer lhe gastou todo o dinheiro que tinha ganho num filme publicitário a pastilhas para o hálito dos bebés, resolveu pôr o pai em tribunal. Contratou um advogado e ganhou a acção. Homer teve de ressarcir o filho. Além disso, o juiz decidiu ainda emancipar Bart, proferindo as seguintes palavras para Homer: «ele já não lhe pertence». Este episódio que à partida parece idiota, toca numa coisa extremamente importante: o dinheiro. Na verdade, o poder dos pais é conquistado, em grande parte, pelo dinheiro que têm. Ou fazes o que mando ou então esquece o carro, a carta, a faculdade, os livros, as saídas à noite, as roupas, a comida, etc. ou, Se me desiludes já sabes o que acontece. Este tipo de chantagem está fortemente enquistado no centro de decisão dos filhos. Se quiserem, os filhos foram programados para serem de determinada forma mesmo que isso choque com o que realmente são. Os pais tornam-se numa espécie de gestores da vida dos filhos. E os filhos deixam, pois não se apercebem da trama. Além disso, os pais são pais e os filhos precisam do dinheiro, pelo menos até começarem a ganhar o seu. Pessoal, isto é verdade. Essa ideia de que as relações entre pais e filhos são fraternas e de que à mesa do jantar se resolvem todos os problemas a conversar, ao fim e ao cabo, essa “realidade” que os Morangos com Açúcar nos mostra, em que o mundo é perfeito ao nível das relações pais-filhos, simplesmente não existe. Então não pode haver amor entre pais e filhos? Claro que pode. Mas depende de que tipo de amor estamos a falar. Tomar como inconcebível a ideia de que um filho não tem necessariamente de amar os pais é protelar uma espécie de obsessão por uma convenção familiar idílica, bem ao jeito do mundo perfeito de um deus qualquer. Para mim, o verdadeiro amor está na livre escolha, nos canais de afectos, na tentativa de nos libertarmos do maior número possível de preconceitos e estereótipos e, assim, escolher. Amar é libertar. É claro que a relação entre pais e filhos é especial. Mas daí até ver mães e filhas numa discoteca, umas ao lado das outras, com um decote até ao umbigo, a competirem umas com as outras para ver quem seduz quem mais eficazmente! Posto isto, o que vemos é uma profunda apropriação da vida dos filhos, em todos os domínios, com a provável excepção da vida sexual. E estes, quando vão para a selva, já sabem como se devem comportar, como devem decidir e porque devem voltar. Um caso evidente e que me choca profundamente é o que se passa com a escolha de parceiro. Se noutros tempos o duplo suicídio era regra, hoje as pessoas suicidam-se simbolicamente, matando os seus desejos, os seus sentimentos, os seus quereres, os seus amores, enfim, a sua natureza. Hoje, a escolha de parceiro é extremamente criteriosa, exageradamente criteriosa, insuportavelmente criteriosa. Há gente que exclui logo à partida gente de um determinado signo porque acham que são isto ou aquilo. Há ainda gente que exclui à partida gente que não esteja disposta a dormir com cães e gatos e a ter de viver numa casa cheia de pêlos. E por aí fora. Ou seja, a escolha acaba por ser uma não-escolha, talvez porque as pessoas não sabem o que querem. Tudo é transformado numa relação de interesses comuns, ao que o casamento veio dar uma consistência maior. Um contrato entre duas pessoas que devem ser uma coisa que seja socialmente viável pois o que se passa dentro das quatro parede é pouco importante. De facto, as pessoas não sabem o que querem, porque se soubessem então esperavam simplesmente pelo amor. Mas como este conflito entre o que se é e o que se deve ser é uma espécie de jogo da corda com cada um a puxar para lados opostos, às vezes lá nos apaixonamos por alguém que julgávamos não estar à espera e a coisa lá acontece. E é bom porque «julgamos possuir nesse amor a suprema felicidade» e chegamos mesmo quase a acreditar que agora é que vamos ser felizes para sempre. Se fossem só os dois, talvez isto não estivesse tão longe da possibilidade de ser real. Mas não. Mais cedo ou mais tarde a consciência começa a pesar. Quero mas não posso. Quero este amor mas não posso porque os meus pais nunca o vão aceitar. Quero esta paixão mas não posso porque ele isto, ela aquilo. Chegamos até a perguntar aos amigos o que acham dele ou dela. Tudo é escrutinado. E depois, bem, depois, decide-se: ou se vive esse amor ou se mata-o.

O que me entristece é esta ideia de que amar é uma espécie de pronto a vestir, com os pais sentadinhos à porta do provador e nós experimentando roupa e saindo para saber se aprovam ou não as nossas escolhas. Ao fim e ao cabo, gente despida de si própria, desiludida, cansada, deprimida. Mais triste ainda, gente que desiste de si própria porque acha que não existe outro caminho para além deste ou que não é possível não ter asas e poder voar.

E sim, faz-me todo o tipo de sentido o duplo suicídio. A minha natureza é que é mais dada a «romper violentamente com todas as convenções sociais e sofrer toda a espécie de males». Justifico-me com Fernando Pessoa,

«(…)Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência! (…)»

(continua)

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