terça-feira, dezembro 12, 2006

O REI VAI NU

Na "tradicional" mensagem do 1.º de Dezembro, o pretendente ao trono português, Dom Duarte Pio (uso Dom por uma questão de respeito e não de submissão) diz que Portugal precisa de um Rei, «não um Rei que legisle; não um Rei que governe; não um Rei que se apresente como salvador espiritual. Mas um conciliador informado do sentido comum que o País quer». Perante o ridículo, não deixa de ser interessante que nem a República se conseguiu ver livre destas iluminuras. Ao fim e ao cabo, "reis" destes, devidamente revestidos com o manto da república, sempre houve aos pontapés. E, de uma forma ou de outra, sempre esbanjaram os nosso dinheiro. Era só o que nos faltava agora termos ainda que nos ajoelhar perante tal gentalha e ainda que os tratar por "suas altezas reais". Portanto, parece-me a mim que a simples defesa da monarquia é por si só uma evidência da desinformação do senhor Dom Duarte sobre o «sentido comum que o País quer». Sobretudo depois de Salazar.

Muito honestamente, este processo de ressuscitamento da monarquia em Portugal começa a irritar-me. Não pela sua legitimidade, que a tem, mas sobretudo pela sua carolice. Já na edição de Novembro da revista Magazine - Grande Informação (uma revista que se dedica à publicação de textos que estejam «de acordo com a filosofia editorial, que defende um país optimista, orgulhoso do seu passado e no seu futuro, uma velha nação da Europa que nasceu no Minho e só parou em Timor , e que pretende dar o seu contributo para a construção de uma Europa cristã, aberta, fraterna e competitiva»), o senhor Dom Duarte, na sua crónica Voz de Portugal (um título que por si só revela a presunção de achar que a sua voz é a voz de Portugal, aliás, um princípio que acaba por ser o fio condutor das "ideias" que defende), vende-nos a ideia de que os portugueses que não se importam de Portugal ser absorvido por Espanha o querem sobretudo porque «sonham com uma Espanha tentadora na sua prosperidade, com um regime que tem no Rei o símbolo da sua unidade». É claro que a seguir denuncia ao que anda quando diz que «tudo isto, e as nossas muitas insatisfações, poderão tornar apetecível para alguns esse caminho [não o de Portugal ser absorvido por Espanha, que aceita e lhe convém, mas o de o Rei de Espanha ser, por consequência, o Rei dos convertidos]. Mas sê-lo-á? A experiência histórica, normalmente boa conselheira, já nos fez rejeitar tal solução.» Quer dizer. O senhor Dom Duarte acha que os portugueses que não se importavam de se converter o fazem por causa do regime monárquico mas que o Rei deve ser ele e não outro embora depois se desfaça em elogios à família real espanhola e, nomeadamente, ao Rei D. Juan Carlos. Como diz o povo, cada um «puxa a brasa à sua sardinha». É claro que comete o equívoco de partir do princípio que nós, os outros portugueses, acreditamos em tudo o que nos dizem. Mas há mais. Ainda na mesma edição da
Magazine é publicada uma entrevista à senhora Dona Isabel de Bragança que insiste na mesma falácia do marido ao dizer que um Presidente da República «que tem o voto de metade da população não representa o país inteiro, representa metade da população». Esta constatação é um disparate. Por duas razões: primeiro porque a seguir a senhora Dona Isabel acha que «existe o reconhecimento de que faz falta uma família ou uma cara do país. Sobretudo hoje em dia, com processo de globalização, estamos a agarrar-nos mais às raízes. No fundo, as pessoas gostam de estabilidade. Não é por acaso que votam sempre segunda vez no Presidente em exercício e, se fosse possível, votariam terceira e quarta. Não será isto uma demonstração inconsciente de um sentimento monárquico?». Ao fim e ao cabo, acha que os portugueses sentem falta de uma família real. A sua, claro; segundo, porque se deduz desta constatação que a senhora Dona Isabel acha que Portugal só deve regressar ao modelo monárquico se todos e só se todos os portugueses o quiserem porque só assim um Rei pode representar a população inteira e não metade, como representa o Presidente da República. Se tomarmos em conta que pelo menos eu não quero um regime monárquico, então lamento imenso mas o rei vai continuar nu. Utilizando uma linguagem claríssima, a senhor Dona Isabel acabou por se enterrar a ela própria. Mas as falácias continuam. Mais à frente responde o seguinte à pergunta "Acha que as pessoas estão muito indiferentes?": «Elas nem têm hipótese de pensar, em primeiro lugar porque, desde as escolas, recebem informações deturpadas, basta ver muitos manuais de História de Portugal; depois, são constantemente torpedeadas por muita desinformação. No fundo, há que fazer uma reflexão: quais são os países mais desenvolvidos da Europa, são repúblicas ou monarquias?» Logo a seguir o jornalista pergunta-lhe, e muito bem, "Não acha que essa simpatia pelas outras monarquias está muito associada ao glamour a que as pessoas assistem?", ao que responde: «Sim, mas também tem muito de raízes, de…», "De identificação?", ajuda o jornalista, «De identificação. Eu lembro-me de ter assistido a uma entrevista nos anos 80 a um punk em Inglaterra - na altura era o movimento punk -, em que ele dizia ser monárquico, e explicava: "eu posso permitir-me a ser assim porque tenho uma rainha". Nunca mais me esqueci daquilo». Pressupõe-se então que num Portugal monárquico, tendo com Rei e Rainha a família de Bragança, as drogas, o aborto e a eutanásia seriam imediatamente liberalizadas, os homossexuais podiam finalmente casar-se e adoptar crianças sem qualquer tipo de entrave, etc. Tudo por identificação. Desde que gritem bem alto viva o rei. É claro que mais à frente desfaz todas as dúvidas dizendo que «é grave haver a legalização do aborto em Portugal, é uma caixa de Pandora: começa-se pelo aborto e daqui a bocado é a eutanásia…». E quanto à adopção de crianças pelos homossexuais remata com o seguinte: «Uma família é um pai e uma mãe e crianças. Já há famílias que, infelizmente, estão divididas porque os pais se separaram. Quanto a outras opções, os psicólogos [muito provavelmente os psicólogos cristãos e monárquicos] dizem que dificilmente proporcionam um ambiente equilibrado para as crianças». Finalmente presenteia-nos com uma dissertação de optimismo sobre o facto dos portugueses serem fantásticos «na maneira como amam a terra» e que «qualquer outro povo com as dificuldades que nós estamos a passar já teriam baixado os braços». E depois não nos deixa esquecer que «Portugal foi construído com muito sangue e esforço dos nossos antepassados e, também, com muitas lágrimas salgadas, como cantou Fernando Pessoa». Queria a senhora Dona Isabel dizer Luís de Camões ("Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal…"). Quando lhe perguntam sobre quais as hipóteses que Portugal tem de mudar de regime, responde: «Tem de haver sobretudo informação correcta, o esclarecimento das pessoas sobre o que é que é e o que não é.» Digamos que neste propósito o casal de Bragança faz um péssimo trabalho. É claro que têm toda a legitimidade para desejarem o que lhes apetecer. Não têm é qualquer tipo de legitimidade para determinarem o apetecer das outras pessoas. Por outro lado, uma estratégia que recorre à falácia e ao disparate para fazer valer a posição não convence ninguém. Pior. Para quem tem ainda paciência, como eu, de ouvir as minorias, é uma absoluta perda de tempo.

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