quinta-feira, novembro 23, 2006

LIÇÕES DE VIDA

Há coisas que apenas a experiência nos ensina. Mais do que ver para crer é acontecer para crer. Mais do que ouvir dizer que é assim ou assado é fazer para depois dizer que de facto é assim ou assado. A vida, a nossa vida, só tem interesse se for acontecendo. E para acontecer é preciso recolher as âncoras, navegar no alto mar e sujeitar-se à sorte e ao azar. E se desesperar sempre tem como alternativa aquele velho ditado: «Há mais marés que marinheiros».

Uma das lições de vida que mais me marcou diz respeito ao amor. Quando cansado e triste regressava a casa, desfeito pela armadilha do amor, lembrei-me de uma canção. A música é, em muitos casos, uma excelente terapia que nos fecha em nós próprios e nos alheia da nossa própria existência. Da primeira vez que me apaixonei (lembro-me como se fosse hoje apesar de ter sido ontem) passava horas e horas em estado de profunda parvoíce vegetativa ao som de dezenas de músicas românticas. Peguei então numa caixa velha, repleta de pó e cheia de discos de vinil. Procurei o que queria e achei. Era um disco de Rui Veloso. Procurei a letra da canção e mais uma vez achei. Chama-se «Paixão». A história é mais ou menos assim.

Tu eras aquela que eu mais queria P'ra me dar algum conforto e companhia Era só contigo que eu sonhava andar P'ra todo o lado e até quem sabe? Talvez casar

Há mulheres que nos marcam. E, ao contrário daquilo que se possa imaginar, marcam-nos não por aquilo que são na cama mas sobretudo por aquilo que são como mulheres (julgo eu mas não conheço a maior parte dos homens). Aquelas que mais me marcaram não foram, muito provavelmente, as que me deram o melhor sexo. É claro que o sexo é importante mas não é exclusivamente importante. Até porque as nossas grandes paixões, precisamente aquelas que os outros acham de não existem nunca e que fingimos o que não sentimos, ganham quase sempre uma dimensão que extravasa o carnal (embora não dispense). Somos capazes até de dobrar uma esquina para estarmos com a mulher que amamos e depressa a nossa vida sem aquela pessoa no quadro deixa de fazer sentido. Sonhamos, em segredo, casar e ter filhos e ter uma casa e de ver DVD’s enroscados um no outro com um copo de vinho tinto numa mão em frente de uma lareira e dormir na mesma cama e rir e chorar juntos e conversar sobre quase tudo. É tudo isto que nos faz ser realmente homens e não apenas o sexo como tantas vezes nos querem fazer crer como sendo a coisa mais importante numa relação entre homens e mulheres. Das mulheres que amei esperei sempre que me tornassem um homem melhor ao mesmo tempo que fazia tudo o que me era possível para a tornar uma mulher melhor. É este amor pelo desenvolvimento do outro, de o tornar uma pessoa melhor, que é belo. Sendo o outro cada vez melhor então o que recebemos dessa mesma pessoa é também cada vez melhor. Claro está que tudo isto não passa da opinião de um romântico. Mas olhem que sou capaz de ter razão.

Mesmo sabendo que não gostavas Empenhei o meu anel de rubi Para te levar ao concerto Que havia no rivoli Era só a ti que eu mais queria Ao meu lado no concerto nesse dia Juntos no escuro de mão dada a ouvir Aquela música maluca sempre a subir

É claro que o mundo não é perfeito. Da mesma forma que não existem príncipes encantados. Como escreveu Clara Pinto Correia no seu excepcional romance No meio do nosso caminho, «ficaram todos muito ocupados a foder a bela adormecida». E, por isso, às vezes a paixão é, digamos, unilateral. Ou inviável. Ou apenas um acontecimento. Mas como nestas ocasiões é a paixão que nos controla, há sempre um mas do tipo: ela não gosta de mim mas eu acredito que se fizer alguma coisa como, por exemplo, empenhar o meu anel de rubi, ela vai apaixonar-se por mim.

Mas tu não ficaste nem meia-hora Não fizeste um esforço p'ra gostar e foste embora Contigo aprendi uma grande lição Não se ama alguém que não ouve a mesma canção Foi nesse dia que percebi Nada mais por nós havia a fazer A minha paixão por ti era um lume
Que não tinha mais lenha por onde arder

É também claro que a experiência nos ensina que o que vem a seguir é uma questão de sorte ou de azar. Se ela não ficar nem meia-hora então tivemos azar e ficámos a saber que não se ama alguém que não ouve a mesma canção. Se ficar então significa que ela ouve a mesma canção que nós e então certamente fomos feitos um para o outro e iremos ser felizes para sempre (convenhamos, fica sempre bem escrever uma coisa destas!). Não ouvir a mesma canção significa muita coisa. O exemplo clássico é a diferença de classes. Ela é rica e ele é pobre. Ela é filha do senhor professor José Maria e eu ele é filho do Zé dos caixotes que trabalha na recolha do lixo. Mas há exemplos menos clássicos mas bem mais representativos. Ela adora animais e ele detesta animais. Ela gosta de blues e ele gosta de kizomba. Os amigos dela são doutores e os amigos dele são bombeiros. Ela gosta de champanhe e ele gosta de cerveja. Ela quer ter filhos e ele não quer. Ela gosta de jantar fora e ele gosta que seja ela a cozinhar para ele. Ela gosta de passar os fins-de-semana em casa dos pais que têm uma vivenda no Cacém e ele detesta ter de passar os fins-de-semana em casa dos pais dela a regar a puta da relva. Ela gosta de ficar em casa à noite a ver filmes e ele gosta de sair sozinho à noite com os amigos. Ela gosta de preto e ele gosta de branco. São, pois, nas pequenas coisas que surgem as supostas incompatibilidades. Mas o que mais me incomoda é quando isto se passa assim: ela gosta de homens altos, louros e de olhos azuis (aqui o alto, louro e de olhos azuis representa uma imagem idealizada qualquer, o tal príncipe encantado) e ele simplesmente gosta dela. Para mim foi das lições mais importantes da minha vida. Não se ama alguém que não ouve a mesma canção. É claro que tudo isto se complica mais tarde porque o amor além de cego é surdo. E não é, de facto, incomum morrer-se de amor. O que é perigoso porque a partir daí ouvimos e passamos a gostar de qualquer canção. É o momento em que deixamos de ser quem somos e deixamos de existir como homens e mulheres e passamos a ser o homem ou a mulher de alguém. Ou, mais assustador ainda, de ninguém.

Como se vê, as canções dizem-nos muito mais do que imaginamos. Para o melhor e para o pior, sobretudo para o melhor, acho eu, só tomamos consciência disso depois de termos batido com a cara no chão. No que me diz respeito, as nódoas são muitas. Mas ainda assim julgo ser o melhor caminho. De facto, é uma grande lição. Não se ama alguém que não ouve a mesma canção. O problema, aliás, o não-problema, é que isto só se aprende com alguém. E, curiosamente, é desse alguém que guardamos as melhores recordações. Porque, raios partam estas coisas do amor, nem mesmo com a cara no chão deixamos de estar dispostos em voltar a empenhar mais uma vez o nosso anel de rubi. Talvez seja essa a nossa desgraça. Ou a nossa sorte.

Sem comentários: