terça-feira, novembro 14, 2006

O ARREFECIMENTO DO CORPO, A MORTE DOS OUTROS

A morte faz parte da vida. Nascemos para morrermos. Fomos programados desde o princípio dos princípios para morrer ao fim de um certo tempo. Uns mais cedo outros mais tarde. Por mais voltas que se dê, por mais plásticas, por mais transplantes, por mais medicamentos, por mais artifícios, o fim é sempre o mesmo. O corpo arrefece e tudo se transforma. Talvez por isso a vida possa ser encarada como uma espécie de doença. Nascemos com a doença da morte. Os velhos morrem. As mulheres morrem. As crianças morrem. Os políticos morrem. Os médicos morrem. Os africanos morrem. Os brasileiro também. Os americanos morrem. Todos morrem. Tudo morre. Basta para isso estar vivo. A morte é, pois, universal e global e implacável. Quando ela vem ninguém consegue manter o corpo quente. Por isso a morte é fria, escura, feia e demente. Nunca tem culpa. A morte é psicopata. Quando os velhos morrem, é a vida. Quando os novos morrem, é a desgraça. Na morte, como na vida, acontece o pior dos piores e o melhor dos melhores. Na morte, como na vida, uns têm tudo e outros têm nada.
Hoje foi o funeral do meu tio. 79 anos. Morreu. É a vida. Não estou habituado a ir a funerais (trata-se sobretudo de um hábito). Mas a oportunidade é única. O corpo está a arrefecer. Não há tempo para amanhã. Quando cheguei à Igreja de S. Domingos de Rana o corpo estava já dentro de uma caixa de madeira envernizada. Cá fora os modernos cangalheiros cumprimentavam quem chegava. Pouca gente. Claro. O morto era velho. Lá dentro uma mesinha repleta de cartões misturados com um pouco de comida fazia-nos lembrar ao que andam estes cangalheiros: atrás da morte pois é o seu ganha pão. As flores, poucas, misturavam-se com umas tiras de tecido com uns dizeres apropriados ao momento. Muito amor. Eterna saudade. Não te esqueceremos. São escolhidos como escolhemos um postal de aniversário, de baptizado ou de casamento. Há para todos os gostos. Mas estas tiras têm uma particularidade. Vão ser lidas pelos outros. Por isso os dizeres são escolhidos com muito cuidado. Chegou então a hora de o padre nos confortar com algumas palavras. E confortou. Apesar de eu saber que aquilo é deitar fora o menino com a água do banho. O programa estabelecia depois um cortejo fúnebre entre a Igreja e o Cemitério. Meia dúzia de carros. Pela quantidade de carros e de pessoas podemos inferir, com alguma precisão, se se trata de um funeral de velhos ou de novos. Neste caso era manifestamente um funeral de velhos. Na loucura do dia-a-dia as pessoas rompem por diversas vezes o cortejo. A morte, representada pelo morto que vai dentro de uma caixa de madeira coberta com um manto e flores, é-lhes absolutamente indiferente. Já no cemitério a visão incomoda-me. Distinguem-se perfeitamente os mortos que foram ricos dos mortos que foram pobres. Os mortos que foram famosos dos mortos que foram comuns. Um cemitério, afinal, fala-nos mais sobre os vivos do que sobre os mortos. E não é de todo uma conversa agradável. Ou pelo menos desilude-nos. O meu tio foi depois colocado numa gaveta pelos tais senhores de fato e gravata, precisamente ao lado da gaveta onde a minha tia tinha sido colocada há cerca de 8 meses atrás. Precisamente da mesma maneira. Cerca de 20 pessoas assistiram às últimas palavras do padre. Todo o discurso fúnebre quis dizer apenas isto: é a vida. Depois cada um regressou à sua vida pois parece que não existe outro caminho além deste. Mas não deixa de ser triste. Porque eu também sou tio. E muito provavelmente, se morrer velho, vai ser também assim. O meu corpo arrefecendo, os outros, poucos, conformando-se e o mundo a ficar precisamente na mesma. Alguém certamente dirá que é a vida. Mas uma voz muda dirá que não. Dirá antes que é a morte.

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