segunda-feira, fevereiro 06, 2006

QUANDO OS OUTROS DEIXAM DE SER QUEM ERAM
E partem para nunca mais voltar!

Giani (1795c) La morte di Clorinda

Quando morremos,
deixamos atrás de nós tudo o que possuímos
e levamos tudo o que somos.
(Autor desconhecido)

Ontem a tia do meu pai e, por conseguinte, minha tia também, faleceu. Tinha 85 anos. Causa da morte? Velhice. Simplesmente a velhice. E não é isso de forma alguma o que me assusta. O que me assusta verdadeiramente é a nossa indiferença pela morte. Esquecer-se da morte e dos mortos é prestar um péssimo serviço à vida e aos vivos, escreveu Philippe Ariès. Talvez esteja profundamente entranhado no nosso inconsciente colectivo uma qualquer disfuncionalidade de lidarmos com a morte e com os mortos. É nesses momentos que as nossas vidas se transformam num autêntico fado, daqueles bem negros e bem chorados. E enquanto nos entupimos com a desgraçada da fatalidade, começamos automaticamente por esquecer quem morre. Acreditamos que é esse o processo de luto e até talvez seja. Mas também acho que vale a pena recordar e até chorar por aqueles que tombaram não porque eram até boas pessoas mas simplesmente pelo que eram e que deixaram de ser. Deles herdamos coisas materiais - dinheiro, casas, carros, bugigangas, etc. Mas deles perdemos para sempre aquilo que eles eram. Os mortos levam consigo uma vida que foi deles e só deles. E eu prefiro chorar por isso.

Certamente que minha tia não era a pessoa mais simpática, a mais sociável, a mais qualquer coisa de social ou familiarmente agradável. Inevitavelmente, as recordações que tenho dela é de uma pele enrugada e de um comportamento típico de uma velha. Sei também que não facilitou a vida aos meus pais quando regressados de África no dia 24 de Dezembro de 1975 mais os meus dois irmãos, não tinham uma casa onde pudessem recomeçar do princípio. Uma história basta para ilustrar o feitio: comprava gelados para o cão e deixava os meus irmãos (crianças na altura) a ver o cão comer. Mas será que tudo isso obriga à indiferença e ao castigo? Aquela mulher que agora descansa em paz, também teve uma vida. Foi criança, brincou com bonecas, aprendeu a escrever, passou por todo aquele ritual de iniciação à vida adulta típica daqueles tempos, apaixonou-se quem sabe por vários homens, sonhou uma vida de cada vez diferente a cada impulso de paixão, que se casou, trabalhou, foi mãe, foi confidente dos seus amigos, foi avó, que viveu a vida à sua maneira e que foi envelhecendo e envelhecendo e adoecendo... e morrendo. Sabemos que tal como o mundo, as pessoas também não são perfeitas. Se julgássemos menos os outros talvez fossemos capazes de construir um mundo melhor. E claro que a minha tia não era perfeita e ainda bem que não era (ainda bem para ela). Mas será que isso nos garante o direito de chorarmos indiferença? Não. A sua história terminou ontem. Nunca mais irá existir uma Luísa como esta. Apenas nos restam as recordações. Nem que sejam as recordações de uma velha rabujenta. Pois era assim que ela era. A partir de hoje, que a sua alma descanse em paz. Nos nossos corações.

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