terça-feira, fevereiro 07, 2006

O MEDO DE EXISTIR, DE FALAR E DE SE SER LIVRE
Ainda sobre os cartoons
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Se por um lado é compreensível a reacção do lado de lá quanto às caricaturas publicadas num jornal dinamarquês, do lado de cá só é compreensível esta reacção se usarmos na nossa análise a palavra MEDO. E se me pedissem para escrever um título que representasse os últimos acontecimentos, parafraseava José Gil e escrevia Ocidente, hoje: O medo de existir, o medo de falar, o medo de ser livre.

Há duas análises possíveis em espaços diferentes. Do lado de lá, este foi um pretexto para encetar uma espécie de guerra religiosa entre dois lados profundamente antagónicos quanto ao modo de ver o mundo. Porém, o motivo não é puramente religioso mas sobretudo (ou talvez unicamente) político. Mas o modo de acção é que é religioso, primeiro porque lhes dá, na sua perspectiva, uma causa. Segundo, porque nessa causa tem de haver um inimigo e nós cumprimos quase na perfeição esse papel. Do lado de cá, as reacções dividiram-se entre aqueles que teorizam e filosofam sobre o conceito abstracto de liberdade de expressão e, dessa forma condenam a publicação dos cartoons, e aqueles que mantém a sua convicção de um mundo livre de censura, livre de fantasmas, simplesmente livre. Se por um lado devemos preocupar-nos com as reacções do lado de lá, é do lado de cá que precisamos de fazer um esforço muito grande de forma a compreendermos o que se passa nesta Velha Europa. E eu, muito honestamente, talvez pela minha tenra idade, não o consigo fazer sozinho.

Por outro lado, não deixa de ser curioso que, talvez culpabilizada pelo seu passado igualmente fanático e sanguinário, a Igreja Católica não tenha tido qualquer pudor em condenar a publicação dos cartoons. E talvez tenha sido a opção mais responsável, como gostam agora de dizer. Mas isso não implica que tenhamos de nos vergar perante o dogma. E já que falei em dogma, permita-me que diga que o conceito de liberdade religiosa é, per si, discriminatório. Senão vejamos. Eu sou ateu. Não acredito nem milito qualquer religião. Logo, para mim, a minha liberdade é desprovida de qualquer conspurcação dogmática. Partir do princípio que a liberdade religiosa se sobrepõe à liberdade de expressão, é discriminar-me, é discriminar todos aqueles que são ateus ou agnósticos, como preferirem.


O dogmatismo leva os homens a matarem-se mutuamente. François Jacob dizia que nada é tão perigoso como a certeza de se ter razão, que nada causa tanta destruição como obsessão duma verdade considerada absoluta. F. Jacob tem razão quando diz que, historicamente, todos os massacres foram cometidos por virtude, em nome da verdadeira religião, do nacionalismo legítimo, da política idónea, da ideologia justa; em suma, em nome do combate contra a verdade do outro. Tudo estaria bem se nos confortássemos com as nossas verdades e não fizéssemos questão de impô-las uns aos outros a qualquer preço. Tudo estaria bem se, do lado de lá, rezassem a Alá e do lado de cá rezassem ao Deus cristão. Tudo estaria bem se vivêssemos num mundo perfeito.

Mas não vivemos num mundo perfeito. E esta retracção do ocidente serviu apenas para mostrar o medo que revolve as nossas entranhas desde o 11 de Setembro e serviu também para mostrar que nos tornámos submissos e incapazes de lutar pela nossa liberdade. Perdemos esta batalha e devemos envergonhar-nos disso. Desta vez, o terrorismo não precisou de sair de casa. E o efeito foi precisamente o mesmo. O MEDO.

Vale a pena citar Agustina Bessa-Luís, in Antes do Degelo:

«O medo é o que impede que tudo o que chega às mãos dos homens não se torne em sua propriedade. Basta produzir uma impressão que não se pode explicar, inserindo no medo o desconforto da culpa. É assim que milhões de pessoas podem ser pastoreadas nas ribeiras da paz por muito poucas. E nas trincheiras da guerra por outras tantas, senão as mesmas.»

Para ler mais sobre concordâncias, discordâncias e outras dâncias, vá até ao Abrupto, de José Pacheco Pereira.

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