quinta-feira, janeiro 12, 2006

PENSAR: Tem que ser


Numa rua de Alvalade, um homem sai do seu restaurante para abrir a porta do armazém (numa porta de metal apenas dois ou três números acima) ao jovem da empresa dos vinhos para descarregar não o sangue de Cristo mas com toda a certeza o pão-nosso de cada dia. No percurso inverso, esse homem cruza-se com outro homem e este cumprimenta o primeiro dizendo: tem que ser. E a resposta é: tem que ser. Muito embora episódios destes abundam por aí, naquele momento fez-se luz! E depois de desatar todos os nós surgiu-me a imagem de dois homens caminhando para o Purgatório dizendo um para o outro, conformados pelo apelo de um destino qualquer: tem que ser. Pois. A história repete-se e transforma-se na forma (o sentido é sempre o mesmo) tão diligentemente quanto a transformação da cor da pele de um camaleão. E é mais ou menos assim:

Caminhamos para o abismo e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Vivemos espartilhados pelo tempo e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Trabalhamos uma vida inteira para sustentarmos uma relação meio trágica meio obsessiva com o dinheiro e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Acordamos de madrugada disfarçando o cinzento do dia e mergulhados nos lençóis que durante toda a noite conservaram o nosso calor somos puxados quase que divinamente pela voz da consciência e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Destruímos os nossos sonhos e os dos outros porque nos enfiaram na cabeça a lenga-lenga da teoria do príncipe encantado e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Vemos com terror e paixão corpos tombando à nossa volta à medida que a chama da vida se apaga e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Bebemos em silêncio as nossas fraquezas e os nossos devaneios e as nossas loucuras psicóticas de um destino divino e dizemos uns para os outros: tem que ser.
Por vezes simplesmente desistimos e dizemos uns para os outros: tem que ser.

Tem que ser.
Olhem lá.
Tem que ser o caraças!
Só tem que ser se me apetecer que seja.
Pronto.

E até podem dizer que me estou a passar e que devia poupar-me às evidências. O problema é que eu não sou muito dado à resignação. Se calhar é essa a minha natureza. E eu tenho de lhe obedecer. Tem que ser. Pois. Porque no final, alguma coisa tem que ser mesmo. E entre o tem que ser e o tem que ser mesmo, resta-nos apenas o livre arbítrio de uma sorte desgraçada e embriagada, acompanhada à mesa por uma miserável vontade de encontrar a felicidade e de dar um qualquer sentido ao nosso caminho. Porque também no final, é isso que todos procuramos. Quer dizer. Tem que ser...

Sugestão de leitura para uma reflexão mais alargada sobre este marasmo: No meio do nosso caminho (Romance) de Clara Pinto Correia, Oficina do Livro, 2005

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