quarta-feira, julho 16, 2008

AINDA O MESMO SINAL DOS TEMPOS: ANÚNCIOS PESSOAIS

O psicólogo Nuno Nodim publicou recentemente na revista Análise Psicológica um artigo muito interessante intitulado “A vida sexual dos anúncios pessoais: Uma revisão da literatura” (referência em baixo). Expurgando toda aquela linguagem própria de um artigo científico, há alguns aspectos que eu gostaria de sublinhar sobretudo porque vão ao encontro daquilo que, no quotidiano, nos surge como algo que é assim e que já ninguém questiona precisamente porque é assim que as coisas acontecem todos os dias chegando ao ponto de parecer que nada se passa. Vejamos. Em todos os estudos realizados que recorreram a anúncios para avaliar dimensões de género no processo de corte, verificou-se a existência de «um padrão em que mulheres tendem a oferecer atractividade física e idade jovem e a procurar estabilidade financeira e estatuto, e em que os homens procuram atracção física e oferecem estabilidade financeira e idade superior». Bem, é claro que dizer-se que existe um padrão não significa necessariamente que todas as coisas aconteçam assim no absoluto. É preciso parcimónia. No entanto, a existência de um padrão é revelador de uma tendência para que as coisas aconteçam assim no relativo. Logo, a probabilidade de fazermos parte desse padrão ou de nalgum momento da nossa vida termos de lidar com ele é bastante elevada. Pois bem. As mulheres oferecem atractividade física e idade jovem e procuram estabilidade financeira e estatuto. No exagero caricatural, é a imagem da jovem bonitinha que procura o empresário de sucesso, o actor de uma novela de prime time, o futebolista daquele grande clube. É também a imagem da jovem bonitinha que gosta de ir às festas e de comprar muita roupa e muitas jóias, e de conduzir um Mercedes SLK e de dizer à mesa do café, para todos ouvirem, que esteve a lanchar em casa do Ministro das Finanças. Os homens procuram atracção física e oferecem estabilidade financeira e estatuto. No exagero caricatural, é o Pedro de Amanhã à mesma hora, um cirurgião que conduz um Porche e que vai casar com a Anabela mas que anda a comer uma stripper toda boa, é o empresário que seduz a sua secretária e lhe oferece um relógio de ouro, é o advogado que tem uma casa no Restelo e anda de mão dada com uma loira toda espampanante. Na verdade, as coisas parecem mesmo acontecer assim. Porém, nem todos os homens podem oferecer estabilidade financeira nem estatuto como nem todas as mulheres podem oferecer atractividade física e idade jovem. E nem por isso os homens e as mulheres deixam de se relacionar. Como referi há pouco, o facto de existir um padrão NÃO significa que TODAS as coisas aconteçam assim no absoluto. Por outro lado, quando fazemos referência a conceitos como «estabilidade financeira» e «estatuto» caímos inevitavelmente no exagero caricatural e estabelecemos como pontos cardiais o sinónimo «milionário» para «estabilidade financeira» e «doutor» para «estatuto». Trata-se, pois, de um viés do nosso ponto de vista constitucional. Sobretudo porque «estabilidade financeira» não significa necessariamente «milionário» nem «estatuto» significa necessariamente um qualquer título académico. Também há «estabilidade financeira» e «estatuto» e «atractividade física» e «idade jovem» na classe média e baixa, ou seja, os fenómenos de corte processam-se não somente interclasses mas também intraclasses. A história da gata borralheira que acaba por casar com o príncipe perfeito parece ser, nestas circunstâncias, inverosímil. Mas talvez nem tanto. Porque também aqui, lá está, é a jovem bonitinha e pobre que acaba por casar com o príncipe rico, tornando-se por isso princesa para sempre de um reino cheio de luxúria e de glória.

MAS, o pano de fundo está em transformação. O que significa que a história da gata borralheira está prestes a tornar-se MESMO inverosímil. Ainda segundo o autor do artigo em referência, «existem indicadores de uma mudança ao nível dos tradicionais papeis e expectativas de género em investigações mais recentes. Estes indicadores têm vindo a evidenciar que mulheres tendem a oferecer e a ser valorizadas pelas suas características de sucesso profissional e os homens pelas suas capacidades de expressão emocional.» Embora estas mudanças me pareçam mais ou menos evidentes, elas não deixam de ser interessantes como indicadores de uma profunda e silenciosa transformação das relações entre homens e mulheres. [1] Não é por isso muito arriscado dizer-se que estamos actualmente a viver uma fase de reajustamento das relações entre homens e mulheres (e, muito antes, de redefinição de géneros) aliás uma fase necessariamente caótica porque procura um novo equilíbrio relacional. As mulheres oferecem agora sucesso profissional. No exagero caricatural, a directora daquela faculdade privada, a jornalista do jornal das 8, a escritora de best-sellers, a taróloga que está em todo o lado e sabe tudo sobre todos, a professora universitária, a administradora de hospital, a ministra de qualquer coisa, a deputada pelo círculo eleitoral dacolá, etc. Já os homens são agora valorizados pelas suas capacidades de expressão emocional. No exagero caricatural, refere-se ao tal «homem sensível» que sente a dor do parto e que, por isso, chora. É também o tal «homem sensível» que compreende, que aceita, que acredita, que ama, que faz. É ainda o tal «homem sensível» que gosta de cães e gatos, sobretudo os dela, e que faz a depilação e usa cremes e vai ao solário. É o oposto do homem do talho e dos piropos e que cospe no chão. Só que, ninguém o assume, é também o homem esquizofrénico que balanceia entre o «sensível» e a «animalidade». Sim, porque todos estes estudos não se referem nunca à dualidade das vidas íntimas dos homens e das mulheres. Pois. Dos homens com estabilidade financeira e sensíveis casados com mulheres jovens e atraentes e bem sucedidas profissionalmente mas que à noite procuram os serviços das prostitutas e das amantes para fazerem aquilo que não são capazes de fazer com as suas mulheres. Ou então o contrário, mulheres jovens e atraentes e bem sucedidas profissionalmente casadas com homens sensíveis e com estabilidade financeira mas que consumam relações extraconjugais de cariz sexual com outros homens (sem qualquer tipo de juízo mas a verdade é que elas mentem melhor do que eles). Vejam, a título de exemplo, o caso de Theodor Busbeck, em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares:

«Suspendendo a respiração por instantes Theodor logo de seguida enviava o ar quente em grande quantidade para as mãos. As ruas estavam desertas, ele ainda se encontrava a alguns quarteirões do centro, mas havia, já ali, naquela rua, um pressentimento, um cheiro a espírito humano, a movimento que transforma; certos sons longínquos surgiam agora cortando a redundância de nada acontecer. Algures, os seres humanos já se começavam a divertir.
O próximo século será o da seriedade ou então perderemos tudo o que conquistámos, pensava Theodor. Se continuarmos a gastar a nossa energia criativa em divertimentos inúteis, em prostitutas e anedotas fáceis, em breve surgirá uma outra espécie animal, mais circunspecta e inapta para o bom humor, que tomará conta, em pouco tempo, das nossas instituições principais. A tendência para contar anedotas pode fazer cair uma cidade, pensava Theodor com alguma ironia – uma espécie animal que se afaste do divertimento e do prazer terá grandes vantagens biológicas em relação aos seres humanos; e Theodor não deixava de olhar para o seu caso: médico importante, investigador muito admirado há três ou quatro anos atrás, que, naquele preciso momento, três e pouco da manhã, numa rua da cidade, caminha para o centro, absolutamente excitado, sem conseguir desligar-se da fotografia que há pouco vira, da mulher deitada na cama, com sangue no nariz e as pernas ostensivamente abertas, exibindo a vagina rodeada de pêlos públicos; avançando, pois, estava Theodor Busbeck, a passo firme, dirigindo-se para a absoluta inutilidade, para o absoluto tempo perdido, um tempo de excitação, sim, de pura excitação, de divertimento, e portanto de eficácia negativa, em suma: tempo de não-humanidade, tempo onde não se constrói. Se fôssemos só isto, o que eu sou neste momento, a caminhar apressado com o pénis duro, desejando encontrar rapidamente uma mulher, se fôssemos só isto seríamos agora os cães dos nossos cães.»

Em suma, toda esta questão dos anúncios pessoais é bastante complexa. Primeiro não sabemos ao certo se os padrões de procura de parceiro são resultado de um critério efectivo e individual ou se são apenas o produto de uma doutrina de «o melhor para os filhos e para as filhas». Ou seja, será que homens e mulheres procuram o que querem ou o que devem querer? E será que homens e mulheres têm sempre o que querem ou devem querer? [2] Por isso, mais do que os anúncios seria interessante incidir o foco de estudo nas respostas a esses anúncios bem como nas relações que se constituem nessa sequência. Segundo, é preciso ter em mente que as relações entre homens e mulheres estabelecem-se de múltiplas formas, independentemente do nosso conceito constitucionalizado de relação monogâmica ideal entre homens e mulheres. Essa coisa de o grande amor da nossa vida é, para o melhor e para o pior, uma propriedade dos Antigos. Hoje há, entre nós, a plena noção que as relações podem ou não funcionar e que há pelo menos a possibilidade de virmos a coleccionar vários grandes amores da nossa vida. Aliás, os anglo-saxónicos criaram o termo «monogamia seriada» precisamente como resposta a esse fenómeno. Por outro lado, nem tudo o que parece é. Porque, como nos mostra Theodor Busbeck, há homens e mulheres que podem iniciar uma relação com base nos padrões enunciados mas que depois bipolarizam a sua vontade e, em alguns casos, a sua própria personalidade, curvando-a para uma marginalidade que é onde afinal acabam por manifestar aquilo que realmente querem, ou seja, é precisamente nessa marginalidade em que homens e mulheres são os cães dos nossos cães.

É precisamente com base neste «ferrolho conceptual» que não nos permite distinguir entre aquilo que se quer e aquilo que se deve querer que eu julgo que é preciso alguma parcimónia de análise. É claro que há padrões mais ou menos dominantes mas a verdade é que ninguém é capaz de ver o que o outro vê. Pessoalmente defendo a tese de uma selecção sexual mais míope (e, portanto, menos mensurável) entre homens e mulheres resultante do conflito entre aquilo que a nossa vontade quer e aquilo que a nossa vontade deve querer. E é precisamente essa miopia que nos faz chegar à conclusão que, afinal, é o tudo que um homem ou uma mulher é ao mesmo tempo que nos atrai. E ser tudo ao mesmo tempo implica não somente «sucesso profissional» e «capacidade de expressão emocional» mas também a frustração dos dias maus e o cansaço das horas longas, etc. Aliás, é precisamente no et cetera que estão as coisas mais significativas. Pois. Esse tudo que ela é ao mesmo tempo. É o que respondo sempre quando me perguntam o que mais gosto nela. E, no entanto, não hesito em deixar-me consumir pela voracidade da rotulagem e da tipologia humana e dizer que me encanta o sorriso dela e a sua vontade de poder, sem medo do mais alto mar, sem medo do mais alto céu, mas ao mesmo tempo frágil na sua circunstância, negando-a, fugindo-lhe, resistindo-lhe. Por isso, tenham cuidado. Não se deixem levar pela ambiguidade da razão. É que ela nem sempre nos faz bem.

«Com estas psicologias metafísicas se consolam os humildes como eu.»
Bernardo Soares

Referência:
Nodim, N. (2007) A vida sexual dos anúncios pessoais: Uma revisão da literatura Análise Psicológica 3 (XXV): 351-361

[1] Sobre esta profunda e silenciosa transformação, por favor leiam, como de pão para a boca se tratasse, o romance No meio do nosso caminho de Clara Pinto Correia (Oficina do Livro). Para abrir o apetite, aqui fica um excerto: «Os maridos, Babalu, são a espécie mais incompreendida pela nossa sociedade, e a que merece menos compaixão. Estás-te a rir? Eh pá, poupa-me a discursos feministas, pela tua rica saúde. Isso já foi. Já era. Já não corresponde a nada do que realmente existe, pelo menos para a nossa geração. Agora os maridos ou não aguentam mais e se divorciam, como eu, ou andam transformados em baratas tontas a tentar fazer sorrir as senhoras, como eu andava dantes. Ou então, pronto, lá se conformam e se calam e, olha, quando elas os deixam vêem a bola na televisão à noite e vão à caça de dia, que sempre é melhor que partir a loiça toda.»

[2] Esta pergunta merece um breve post-script. Será que homens e mulheres têm sempre o que querem ou devem querer? A minha resposta é peremptória: NÃO. Primeiro porque é difícil para os homens e mulheres aperceberem-se realmente do que querem ou do que devem querer. Segundo, porque eu acho que o que se quer e o que se deve querer são duas faces da mesma moeda. São uma espécie de moléculas que se conjugam entre si para formar uma enzima que, pelo modelo do encaixe induzido, será activada pelo substrato. Ou seja, é claro que existem padrões e critérios mais ou menos explícitos que conformam a enzima mas no final de contas esperamos que um qualquer substrato (que não é, na verdade, um qualquer porque a indução do encaixe corresponde apenas a um conjunto limitado de combinações possíveis) nos active. O mistério está precisamente na conjugação das duas moléculas – o que se quer e o que se deve querer – e no mecanismo de activação por parte do substrato. Aliás, sobre isto os cientistas têm descoberto algumas coisas interessantes mas é matéria que deixarei para uma próxima oportunidade.

1 comentário:

Teste Sniqper disse...

Pedindo antecipadas desculpas pela “invasão” e alguma usurpação de espaço, gostaríamos de deixar o convite para uma visita a este Espaço que irá agitar as águas da Passividade Portuguesa...