terça-feira, junho 10, 2008

UM SINAL DOS TEMPOS

Releio-me.

Há momentos da nossa vida em que sentimos uma necessidade miserável e incompreendida de começar do princípio. São momentos em que, desfeitos pela armadilha do amor, nos sentimos cansados, exaustos e tristes. E vencidos. São momentos que nos fazem olhar o espelho e perceber que o medo não nos pode impedir de tentar. São momentos que, como ao poeta, nos trazem à memória uma frase batida. Hoje tem de ser o primeiro dia do resto da nossa vida.
O nosso princípio teve um tempo e um lugar. E teve sobretudo uma história. Gabriel García Marquez escreveu que a vida não é a que cada um viveu mas a que recorda e a forma como recorda para contá-la. Gosto desta frase. Faz-me sentido. Mas do outro lado do espelho a história é outra. É uma história de um amor não cumprido (para mim) ou de um amor inviável (para ti). É também uma história de uma paixão surda que não quis ouvir o que tínhamos para dizer um ao outro.
Tudo começou como começam tantas outras paixões. Eu não estava à tua espera e tu apareceste. Tu não me procuravas e encontraste-me. Os teus olhos azuis e o teu cabelo ondulado fizeram com que tudo nunca mais fosse o mesmo. E tudo nunca mais foi o mesmo outra vez quando partiste e me deixaste sozinho no meu mundo, que dizes ser cinzento, a desmamar uma paixão que se transformou em amor, daqueles amores que os outros acham que não existem nunca e que fingimos o que não sentimos. Sonhei casar contigo, sonhei ter filhos contigo, sonhei sermos os dois felizes para sempre.
Mas tu apressaste-te a desfazer todos os meus sonhos e todas as minhas ilusões. Da mesma forma que eu me tinha apressado a fazê-los. Sempre admirei a tua determinação, mesmo sabendo que sofres com isso, porque é uma determinação que luta nas entranhas entre o que se gosta e o que se deve gostar. Sem nos apercebermos que não existem príncipes encantados. Pois, como escreveu Clara Pinto Correia, ficaram todos entretidos a foder a Bela Adormecida. Mas como gostamos sempre de acreditar, e talvez seja esse o nosso programa de vida, vamos caminhando e lutando e ferindo sem querer o nosso coração.
Regressei ao Algarve. Ao lugar onde o meu amor por ti nasceu. Ao lugar onde os meus sonhos por ti e contigo ganharam forma e sentido. Fui lá despedir-me do ano velho. Regressei a esse lugar sem ti e com os meus sonhos desfeitos. Apenas imagens projectadas no vazio me aconchegavam a alma. Imagens das minhas mãos a percorrerem o teu corpo. Imagens dos nossos lábios a envolverem-se. Imagens das nossas lutas interiores entre o desejo e o medo, com o desejo a vencer sempre que nos tocávamos. Imagens dos jogos de sedução que gostávamos de jogar. E de ganhar. Imagens de duas pessoas sonhando uma vida à pressa com pressa de a viver. Imagens do teu cheiro que ficou marcado para sempre na cama onde durante tantas noites nos descobrimos a cada impulso de paixão. E que voltei a sentir.
Deitado naquela cama, esperei por ti. Mais uma vez. Fechei os olhos e apareceste. Juntos, nos meus sonhos, fomos felizes pela última vez. Tal como os salmões que regressam ao lugar do rio onde nasceram para desovar e morrer, os meus sonhos contigo ali nasceram. E ali foram morrer. Tal como os salmões, o nosso encontro – que foi muito mais que um mero encontro de caminhos – acabou por desovar boas recordações. Tal como os salmões, os meus sonhos morreram onde nasceram. E começo agora do princípio. Outra vez. E de cada vez de uma forma diferente. Porque mais uma vez hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.


Este conto intitula-se «Como os salmões, os meus sonhos» e foi publicado numa colectânea de Histórias Devidas (Edições ASA, 2006). Recordo-me muito bem do que me levou a escrevê-lo. E melhor ainda do que ele conta. Acontece que sempre o achei vulgar. Uma espécie de cliché das histórias de amor. Mas hoje, ao relê-lo a esta distância, vejo uma coisa diferente. Hoje, este conto surge-me como um sinal dos tempos. Um tempo de decadência. E, por conseguinte, também de decadência das relações entre homens e mulheres, e que resulta num total esvaziamento do estar-com. Homens e mulheres surgem agora como dois vegetais, desencontrados, sem qualquer possibilidade de vínculo face-a-face, apenas movidos pelo combustível da ideologia do individualismo. Homens e mulheres relacionam-se utilitariamente. Banalizam o amor e o compromisso. Não procuram o afecto. Apenas o prazer imediato. Privilegiam mais o relacionamento sexual do que o envolvimento emocional e afectivo. Tudo isto sem sequer se aperceberem que uma sexualidade dissociada de afecto só pode resultar numa vivência da intimidade vazia e frustrante. E, talvez por tudo isto, estão sempre a começar do princípio. Aliás, nunca saem do princípio. Sem perceberem porquê. Nestes tempos estamos assim. Salmões desesperados porque nos esquecemos onde fica o nosso lugar do rio. Precisamente esse lugar onde homens e mulheres ainda lutavam uns pelos outros. Uns pelos outros. Lembram-se?

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