quinta-feira, junho 12, 2008

NOTAS AVULSAS SOB EFEITO DO CIPRALEX

Oiço neste momento Kenny Rogers a cantar Lady. E recordo os anos 80 em todo o seu esplendor. Olho para a mesa e vejo papeis espalhados com esquemas do ciclo dos ácidos tricarbolíxicos, e do ciclo da ureia, e do ciclo de Cori, e reacções, muitas reações, demasiadas reacções mostrando a biossíntese e a degradação dos aminoácidos, das proteínas, dos glúcidos e dos lípidos, sem nunca esquecer as enzimas e as co-enzimas. Do lado esquerdo está uma caixa de Cipralex que não me deixa esquecer que não estou nos meus melhores dias. A televisão, transformada em lixo animado, invade a sala com notícias do mundo podre, e programas inúteis, e séries sobre a morte. Áliás, a morte tornou-se agora entretenimento. A futebolomania, como não podia deixar de ser, lá vai pulsando. Lá fora os carros passam com as bandeiras hirtas, os casais passeiam ambos com uma t-shirt da Selecção, o cão fareja com o lenço ao pescoço. Discute-se no café se o Scolari fez bem em ter anunciado que se vai embora antes de ter terminado o Euro 2008. Os Santos já chegaram. Os noivos de Santo António já casaram e vão agora ser felizes para sempre. As marchas ainda marcham na avenida. Os bairros estão apinhados de gente entretida a comer e a beber. Suspiro de cansaço. Quer dizer. Suspiro o cansaço. Não sai. Está entranhado. Parece que as bombas já têm combustível. E os supermercados comida. O Primeiro-ministro, no entanto, faz um auto-elogio ao seu governo pela forma exemplar como resolveu este problema. As pessoas zangam-se. As fés dissolvem-se. Os vivos morrem. A luz, a demasiada luz não nos deixa ver o céu. Falto a um jantar. Hoje não me apetece. Suspiro outra vez o cansaço. Ele não sai. Ele não quer sair. Fumo um cigarro à janela. A brisa é agradável. Mas só por momentos. A náusea regressa. A agonia também. Deito-me no sofá em posição fetal. Isto já vai passar. De olhos fechados penso numa dezena de pessoas ao mesmo tempo que passo em revista os enzimas envolvidos no ciclo dos ácidos tricarboxílicos. Penso com quem gostava de estar. Penso em quem gostava que aqui estivesse. Penso naquela que me deixou. Penso naquela que foi deixada. Penso naquela que já não vejo há muito tempo. Penso no meu pai. Apercebo-me de como me sinto órfão desde que ele morreu. Choro. Já estou mais bem disposto. A Quadratura do Círculo começou há pouco. Concordo com o que diz José Pacheco Pereira. Sempre concordei. O Verão parece que chegou mas parece que não fica. Amanhã é feriado. Tenho fome. Leio o meu post anterior em que digo que "Releio". Lembrei-me do que Fernando Pessoa escreveu através de um dos seus heterónimos, Bernardo Soares, num dos meus livros preferidos, O Livro do Desassossego:

«(...) Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada...»

Já não compreendo mesmo nada...

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