segunda-feira, maio 19, 2008

OS MENINOS À VOLTA DA FOGUEIRA

Sim, os meninos à volta da fogueira, precisamente aqueles que tiveram o azar de não crescerem no seio de uma família (e não me venham com essa treta que há famílias disfuncionais que mais valia não terem filhos porque nenhuma família é perfeita e nós também nunca fizemos um esforço para que ela tomasse essa direcção), um dia hão-de saber que os adultos são os cretinos. E hão-de saber sobretudo que, enquanto estavam despejadas num andar qualquer de uma rua qualquer, com tanto de vulgar como de ordinário, lá para as bandas da outra margem, enquanto esquematizavam nas suas pequenas cabecinhas um mundo à imagem daquilo que lhes iam acontecendo no seu triste quotidiano feito de nada (refiro-me ao nada de afectos que se sente, que se ouve, que se cheira, quando nos aproximamos daquelas crianças), hão-de saber pois que uma meia dúzia de burocratas e outra meia dúzia de “técnicos” escreviam muito sobre os “direitos das crianças” e o “superior interesse da criança” e as leis de “protecção aos menores” e que faziam muitas reuniões e tomavam muitos cafés e até se riam muito porque até achavam piada a tudo aquilo. E hão-de saber também que, enquanto lhes doíam os pés de estarem na fila de espera por uma nova família também com dores nos pés porque também na fila de espera, mas do outro lado do muro, uma dúzia dos tais técnicos, senão os mesmos, ia distribuindo uns papelinhos com um contacto no Brasil de uma advogada que trata de processos de adopção internacionais mais, muito mais rapidamente. Pior. Hão-de saber também que tiveram a oportunidade de sair dali para fora e de terem o seu quartinho e a sua caminha, todo bonitinho e feito à sua medida, mas que saiu frustrada por um dos tais “técnicos” que, como quem está a ser um porreiraço, “aconselhou” o casal a esperar mais um pouco por “outro” porque “aquele” tinha uns “problemazinhos” físicos. Sim, um dia hão-de saber que os adultos são mesmo uns cretinos. E hão-de saber também que, afinal, não os puseram simplesmente à volta da fogueira mas sim dentro da fogueira. São eles que ardem. São os seus sonhos e, sobretudo, as suas possibilidades de existir e de optar perante essas múltiplas possibilidades, ao fim e ao cabo, a sua própria liberdade, é tudo isso que se transformou em cinza e em nada.

Não, não vale a pena fingir que o mundo é perfeito. E que as crianças são “apenas” o “segredo” dos homens adultos. Como também não vale a pena fingir que as crianças são, no sentido estético, as melhores coisas do mundo e que representam uma espécie de pureza de raça e, por isso, lhes devemos tudo. Como também não vale a pena fingir que nos preocupamos muito com o trabalho infantil e o condenamos veemente quando lemos qualquer coisa no jornal para depois, logo a seguir, irmos a uma loja à maneira comprar uns sapatos tão giríssimos quanto caríssimos, made in Indonésia, o que, muito provavelmente, quer dizer “cozidos por crianças de 8 anos”. Ou então ligar a televisão e ver aquela novela em que grande parte do elenco é miudagem que se farta de trabalhar a troco de uma promessa de fama e, claro está, de uns bons euros. Ah, e ainda ouvir, porque estava no guião, um miúdo a dizer para outro: “Vamos lá fora fumar uma?!” (notar que esta novela vai para o ar entre as 18h e as 20h). É claro que este fingimento é sobretudo inconsciente. O que quer dizer que os adultos são cretinos mesmo sem se aperceberem disso. Mas a má-fé revela-se nas formas mais subtis. Por exemplo, o senhor Presidente da República, há uns tempos atrás, perguntava o que é que temos de fazer para que nasçam mais crianças. É claro que os jornais pouco escreveram sobre o assunto pois estavam entretidos com o sorteio do Euro 2008. Mas o Prós & Contras lá fez um programa intitulado “baixa natalidade”, com médicos e sociólogos e demógrafos. Na verdade, não vi nem o princípio nem o fim. Porém, bastou-me ver sentado num dos lados o ministro da segurança social para perceber tudo. Sobretudo que o principal problema que aflige esta gente é a sustentabilidade da segurança social, ou seja, a actual taxa de natalidade é um problema porque, dentro de algum tempo, a quantidade de dinheiro que entra todos os meses na segurança social não vai ser suficiente para cobrir a quantidade de dinheiro que sai também todos os meses (para pensões, reformas, etc.). Ora, eu admito que esta é uma parte da questão. Mas não é de todo a questão. E é de uma cretinice insuportável parecerem preocupados com a felicidade maternal humana quando, para eles, não passa de uma questão matemática. Nestes tempos é assim. Dantes quem fazia um filho fazia-o por gosto. Hoje pede-se que se façam filhos para garantir a sustentabilidade da segurança social. E um dia também hão-de saber isto.

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