segunda-feira, setembro 10, 2007

ESSA PARTE DOS HOMENS

Sem generalizações. É claro que sim. Os homens não são, por definição, todos uns estupores. O cromossoma Y, além de expressar o factor masculinizante e de nos causar o embaraço de nos fazer crescer pêlos nas orelhas, não tem nada a ver com o facto de uma parte dos homens serem uns estupores. Esses, os estupores, são contingentes e não necessários. OK, podemos até achar que os homens estão a viver uma fase em que começam a ter que lutar para serem homens. Tudo bem. Isso tira algum sentido da vida, precisamente aquele sentido constitucionalizado que nos fazia acreditar que pilinhas e pipis não são exactamente a mesma coisa. Ficámos todos muito cansados e exaustos e tristes e deprimidos, sem saber muito bem como é que chegámos até aqui e muito menos o que vem a seguir. É claro que o estereótipo que faz dos homens, até prova em contrário, uns estupores, traz consigo um cabaz de preconceitos que são combustível para o próprio estereótipo.

«Os maridos, Balu, são a espécie mais incompreendida pela nossa sociedade, e a que merece menos compaixão. Estás-te a rir? Eh pá, poupa-me a discursos feministas, pela tua rica saúde. Isso já foi. Já não corresponde a nada do que realmente existe, pelo menos para a nossa geração. Agora os maridos ou não aguentam mais e se divorciam, como eu, ou andam transformados em baratas tontas a tentar fazer sorrir as senhoras, como eu andava dantes. Ou então, pronto, lá se conformam e se calam e, olha, quando elas os deixam vêem a bola na televisão à noite e vão à caça de dia, que sempre é melhor que partir a loiça toda.»[*]


Os preconceitos têm um efeito corrosivo. Não matam mas moem. E de que maneira! Se os homens falassem sobre o que sentem quando estão calados, se as mulheres não partissem do princípio que os homens são todos uns estupores e que o ónus da prova está precisamente em provar o contrário, talvez a relação entre homens e mulheres fosse diferente. Não quero com isto dizer que fosse melhor mas perante o estado de coisas olhem que não custava nada tentar.

«Quando a janela se fecha
E se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços
De céu azul e magenta

O meu olhar tem razões

Que o coração não frequenta

Por favor, diz-me quem és tu de novo?
(Vi e José)» [*]

Sim, os preconceitos têm mesmo um efeito corrosivo. Não matam mas moem. E sujeitam os homens às mais terríveis discriminações. Falta a coragem para dizer basta e para dizer que assim não.


José para Joaquim: «E OK, tudo bem, posso ter sido um péssimo marido, um gajo sem jeito nenhum para a cena da família, até posso ter sido um péssimo pai. Mas não penses que não cheguei a tentar. Quando era novo e tinha ilusões, como tu, e pensava que se baixasse a bola e aguentasse calado havia tudo de correr mais ou menos. Gramei muito almoço de domingo com a família da primeira-dama, reguei muita relva ao fim do dia numa puta duma vivenda em Tires, visitei numerosos parentes insuportáveis todo composto e sem abrir o bico, o que é que julgas? Agora, um gajo devia estar no direito de chegar à conclusão de que não se aguenta vestido com uma roupa que não lhe serve, e que não pode andar a vida inteira com uns sapatos que lhe magoam os pés. Um gajo devia estar no direito de se ver finalmente livre dos sapatos, porque quanto mais andar com eles mais se magoa, até já não conseguir andar de todo. E um gajo devia poder saltar fora sem toda a gente decidir por unanimidade absoluta que tudo isto quer dizer que um gajo não quer saber dos filhos.»
[*]

OK, tudo bem, um gajo devia mesmo poder saltar fora sem toda a gente decidir por unanimidade absoluta que tudo isto quer dizer que um gajo não quer saber dos filhos. Mas o problema é que há mesmo uma parte dos homens que, de facto, não quer saber dos filhos. E é precisamente sobre essa parte dos homens que eu quero falar.

Sim, a vida está difícil. Sim, nunca ninguém nos disse que ser adulto é uma coisa muito complicada. Sim, sustentar uma família é uma tarefa árdua. Sim, por vezes a vida prega-nos partidas que julgávamos acontecer no programa da Júlia. Sim, tudo isto até podem ser razões para abandonar o barco. Agora, abandonar os filhos?! E ainda por cima ter a lata de dizer à boca cheia que eles estão bem porque estão com a "cabra" da mãe?! Precisamente a mesma mãe, que é mãe e pai ao mesmo tempo, que trabalha angustiada porque as contas já não são a dividir por dois, e a filha está agora na adolescência e, como é óbvio, quer coisas que os adolescentes normalmente querem, e que caminha há vários anos para os tribunais rogando por uma desfecho que é mais uma vez adiado porque as autoridades desconhecem o paradeiro do pai que está sentado no café do bairro a beber uma mini ou porque a mãe dele, que já é velhinha e faz tudo pelo seu filhinho, diz que o filho foi trabalhar para Espanha quando, afinal, está a trabalhar num bar da praia a meia dúzia de quilómetro dali. A má-fé é total e consciente. O que torna tudo ainda mais grave. Estes homens, que fogem como podem e enquanto podem, dizem baixinho que a cabra não há-de ver um tostão seu. Aqui, o azar é do filho. Quem lhe manda viver com a cabra?! E como se todo este cenário de degradação não chegasse, o Estado ainda responde com mais vazio e com mais queima de tempo. Só em último caso assume a responsabilidade de se substituir ao pai na pensão de alimentos. Mas atenção, só em último caso. Entretanto o tempo vai passando e há alturas em que o corpo dói tanto quanto a alma. Sobram os cigarros para dar uma ajudinha a aguentar tudo isto mas que, afinal, são ainda motivo para estas mulheres ouvirem bocas do tipo "olha que para os cigarros tens tu dinheiro"! Sim, o tempo vai escorrendo. Às vezes encarna-se a personagem da coitadinha pois também às vezes é preciso nem que seja para fazer com que o banco não debite despesas de manutenção uma vez que manter uma quantia igual ou superior a 1000 euros por forma a ficar automaticamente isenta de despesas de manutenção é pura ilusão. Pede-se frequentemente ajuda em silêncio mas numa sociedade tão egoísta como a nossa poucos ouvem. E dos que ouvem, uma pequeníssima parte ajuda realmente. A miúda vai começar as aulas, precisa de livros. E como está em crescimento, as roupas do ano passado já não lhe servem. Mas o talão cuspido pela caixa multibanco mostra-lhe um saldo que não passa os dois algarismos, e ainda tem a luz e a água para pagar. Dantes, tudo isto era resolvido entre duas pessoas. Reparem. Era resolvido. Mas agora, parece que tudo tem mesmo de ficar por resolver. E o tempo vai passando, os tribunais andam ocupados com milhares de processos, os advogados oficiosos passam por períodos letárgicos (talvez porque o Estado demora tanto tempo a pagar-lhes o que lhes deve). Quanto aos pais, bom, esses estupores continuam a sua vidinha sem um único remorso, sem um vislumbre de arrependimento, sem um pedaço de compaixão. O barco vai-se mesmo afundar e eles não querem mesmo saber. Antes pelo contrário. Às investidas respondem com ameaças e com mais manobras de fuga. Os filhos, esses, não interessam. O que importa é lixar a cabra. Há ainda uns homens que são pais fim-de-semana sim, fim-de-semana não. Quer dizer. Quando lhes dá jeito. Há também uns que dizem às filhas, pelo telefone, que, com grande pena, elas não podem estar com ele este Verão porque este ano o pai, coitadinho, vai ter que trabalhar, ao mesmo tempo que compra na internet uma passagem de avião com destino a São Paulo, onde o espera uma mulata gostosa para noites de autênticas aventuras sexuais. Este mês os juros da casa voltaram a subir. A prestação, que dantes era dividida por dois, é agora um fardo cada vez mais pesado. Juros mais altos significa menos comida. Menos comida significa mais fome. Mas o corpo, esse, lá se vai habituando a estas intermitências. Não mata mas mói. Não se sabe bem como mas lá aparece alguém que diz gostar delas e que diz até gostar de miúdos. Pode ser que os homens não sejam todos iguais e que este vá ser feliz com ela para sempre. Com ela e com os filhos dela. O entusiasmo é tanto e a necessidade também que depressa a mãe pede que transfiram o filho de 8 anos para uma escola perto da casa do novo namorado, lá para os lados de Alverca. Tudo parece que vai dar certo. E até pode ser que sim. Mas o problema é que o filho é dela e ele já teve o que queria, isto é, uma boa dose de sexo. Volta a fazer as malas. Nelas está incluído o miúdo. Pede novamente transferência para a escola antiga. No processo, perdem-se livros. O miúdo tem agora de seguir as aulas por fotocópias que a professora, semana a semana, vai tirando com o seu próprio dinheiro pois o orçamento da escola não permite estas "extravagâncias". E tudo volta a ser como era. Uma vida de merda. Os estupores, lá vão caminhando, em alguns casos fazendo o mesmo a outras mulheres, a outros filhos. Sem dó nem piedade. Aliás, nem é disso que estas mulheres e que estas crianças precisam. O que estas mulheres precisam, no imediato, é de, pelo menos, uma nota de 50 euros que as ajude a criar os filhos. E o que estas crianças precisam, também no imediato, é de um pai. Mas isso, desconfio, já é pedir muito. Para as mulheres, a revolta é imensa. A dor é enorme. Os estragos também. Para elas os filhos passam a ser tudo porque acham que já não têm nada. Eu, como homem, só me posso envergonhar dessa parte dos homens. E ainda dizer, de boa-fé, que, apesar de tudo, convém dizer que nem todos os homens são uns estupores.

«Vá, mulher. Anda. Vamos lá arregaçar as mangas, e arrumar de vez esta merda toda
[*]

Nota 1: por forma a ter um panorama do que se passa no mundo dos tribunais de família em que grande parte destes casos se desenrola, tive uma longa conversa com uma amiga minha que é advogada. E foi muito bom porque ela alertou-me para algumas fragilidades do meu ponto de vista. Antecipando-me ao leitor na detecção dessas fragilidades, devo dizer o seguinte: não há da minha parte qualquer tentativa de demonização dos homens. Falo dessa parte dos homens que são uns estupores, que abandonam os filhos e as mulheres, deixando-os em muito má situação, em grande parte dos casos como forma de "castigar a cabra". É claro que também há mulheres do mesmo calibre, que engendram esquemas muito complexos cujo objectivo é sacar a maior quantidade de dinheiro no menor tempo possível e depois ir-se embora, ela e ela e mais ninguém, deixando para trás o homem e os filhos. É um outro capítulo da mesma história que poderei eventualmente contar mais tarde. Por outro lado, também é verdade que há um défice de informação no que diz respeito aos direitos das mulheres que se vêem nesta situação. Neste aspecto eu não partilho da opinião da minha amiga que insiste que as pessoas devem ser proactivas no sentido de se artilharem com todos os meios que a lei lhes confere. E não partilho desta opinião sobretudo porque uma verdadeira informação e pleno esclarecimento do cidadão e o acesso ao direito no sentido próprio e pleno da palavra, realmente só se verifica quando há dinheiro. Além disso, como pode uma mulher, despida de si própria, com o corpo dorido, a sentirem-se sujas e cansadas, exaustas e deprimidas, esvaziadas de sentido porque daqui a umas horas o dia (pior, o inferno) começa outra vez, como podem estas mulheres ainda ser proactivas em matéria de direito, liberdades e garantias?! Ainda por cima em Portugal?! Não sei, não sei.

Nota 2: o Relatório sobre Protecção Social e Inclusão Social de 2007, conforme notou no seu discurso o senhor Presidente da República, no Parlamento Europeu, reconhece que "as crianças correm um risco de pobreza superior à média na maior parte dos Estados-membros. Em alguns, quase uma em cada três crianças está em risco de pobreza. O risco agrava-se quando as crianças vivem no seio de famílias monoparentais ou desempregadas".

[*] Excertos do romance de Clara Pinto Correia, No meio do nosso caminho, Oficina do Livro, 2005

Foto, Partnership for children, daqui.

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