sexta-feira, agosto 24, 2007

CANÇÕES QUE JÁ NÃO EXISTEM

Se há livros que vale a pena escrever e publicar e ler e guardar, este é certamente um deles. Com poemas de Clara Pinto Correia e fotografias de José Pedro Sousa Dias, Canções que já não existem abre-nos a janela para um mundo bem diferente daquele que é o mundo dos nossos dias. É um belíssimo livro. Sim, essa é a palavra certa. Belo. Tanto nas palavras como nas imagens. Tanto para aqueles que viveram nesse mundo e o recordam, como para aqueles, como eu, que, apesar de não terem vivido nesse mundo, sentem falta dele. E que mundo era esse? Vejamos o que diz Clara Pinto Correia, logo no início:
«Para onde terão ido as nossas maçãs? Aquelas maçãs verdes que costumávamos apanhar despreocupadamente das árvores, pequeninas, calosas, com bichos, tão vivas no sabor, tão ricas na textura. Cada uma delas era absolutamente única, irrepetível, inclonável. Estavam todas por ali, à beira do caminho, de cada vez que nós partíamos para ver o mundo, sem carro, sem casa, sem mapa, sem horas, como nas grandes epopeias medievais, ou como no virar da página de tantos contos tradicionais portugueses. Não tínhamos nada. Por isso, também não havia nada que não fosse possível. Estávamos todos apaixonados, regra geral pelas pessoas erradas. Por isso, as paixões viviam-se como grandes aventuras todas ainda em aberto, e porque era assim que vivíamos éramos completamente leves. Depois ninguém se lembra muito bem do que foi que aconteceu, mas de repente já não nos restava qualquer leveza. Como que de um dia para o outro, carregávamos agora nos ombros todo o peso do mundo. A vida era um labirinto de responsabilidades e deveres sem grande sentido, onde já não existiam caminhos e já não cresciam maçãs retorcidas penduradas nos muros. E, dos amores, existiam amarguras que nem sequer tinham nome. Era como se nos tivéssemos acostumado à ideia de que não ia ser bom, e de que nunca existiriam fins felizes. E, depois de nos termos habituado, já nos tínhamos mesmo esquecido. Já ninguém se lembrava de invocar sequer o conceito de felicidade. O mundo dos nossos dias está a atravessar um ciclo histórico de mudança rápida e permanente, quase sempre para pior. Insensivelmente, sem darmos sequer por isso, praticamente todos os dias perdemos mais um bocadinho da nossa integridade, da nossa qualidade humana, da nossa calma, do nosso ritmo pessoal, das nossas ideias próprias, do nosso tempo interior, dos nossos sonhos, da nossa alma. Temo que correr tanto, e somos bombardeados por todos os lados com tanta informação, que nos vamos deixando embrutecer, esgotar, degenerar intelectual e espiritualmente, até ficarmos todos completamente plastificados, massificados, sem identidade nem rumo, como num formigueiro disfuncional em que todos parecemos iguais mas não somos, e todos temos funções precisas e mecânicas para executar mas nunca conseguimos sequer perceber o que é que estamos mesmo a fazer, nem porquê.»
Mas, afinal, o que foi que nos aconteceu? A que distância deixámos o nosso coração?

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