terça-feira, setembro 12, 2006

SENHOR BACH, AFINAL HÁ LONGE E DISTÂNCIA

Tenho uma amiga que comprou uma casa. A sua primeira casa. É o mais banal dos sonhos embora seja cada vez mais o menos concretizável. Excepto se tivermos pais ricos ou tivermos ganho a lotaria. Neste caso a sorte é dela. Tem pais ricos. O seu T4 no Chiado com vista para o rio Tejo é a menina dos seus olhos. Uma casa sofisticada, moderna e bem localizada. Na decoração interior fez questão de usar somente madeira da Indonésia. Vi aquilo e não aguentei. Tinha de me armar em moralista. E assim foi. Comecei por lhe dizer que a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. Pareceu-me oportuno dizer isto. E depois disse-lhe que os orangotangos ocupam duas ilhas da Indonésia: Sumatra e Bornéu. São animais absolutamente fascinantes e perfeitamente adaptados ao ambiente arborícola. Quer dizer. Andam de árvore em árvore. A 50 metros do solo. Pois é nelas que eles vivem. É a sua casa. O seu espaço. O seu home sweet home. Os orangotangos de Sumatra são mais pequenos que os de Bornéu. Isto porque os de Sumatra raramente descem ao solo por causa dos tigres (também, adivinhem, em extinção). Os de Bornéu não têm essa preocupação. Por isso comem mais. E também por isso são maiores. Pedi-lhe depois para fixar bem isto: os orangotangos vivem nas árvores e em Sumatra raramente descem ao solo por causa dos tigres. Segui com o monólogo. Estima-se que actualmente nestas duas ilhas existem apenas 100 mil orangotangos (há quem conte apenas 20 mil) e daqui a 20 anos serão apenas uma memória. Estarão extintos. Porquê? Porque por esse mundo fora há milhares e milhares de primatas humanos a querer decorar a sua casa com mobília feita de madeira da Indonésia. E como eu lhe tinha dito, a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. E a madeira é a madeira das árvores, precisamente as milhares de árvores que são abatidas todos os anos em Sumatra e Bornéu. Uma autêntica e trágica devastação. Em nome da predação económica. Dos forasteiros. Daqueles que fazem o trabalho sujo mas também daqueles que sustentam o mercado. Consumindo. Porque, afinal, são estes que puxam o fio. Voltei um pouco a trás. Os orangotangos vivem nas árvores. Ora se lhes tiramos as árvores deixa de haver orangotangos. Porque eles não sabem viver no solo. Como nós não sabemos viver nas árvores. Não deixa de ser curioso que os mesmos forasteiros, que gozam da complacência das autoridades locais, ainda têm tempo para pegar nalguns exemplares e vendê-los para o estrangeiro. Digamos que estes têm uma posição mais realista. No fim, restam apenas as organizações não governamentais que perante esta tragédia, que é de todos, vai fazendo o que pode. A moral da história é esta: o bocado de madeira que ela trouxe para casa era afinal um bocado de casa de uma vida que lá bem longe deixou de o ser. E isso parece não incomodar ninguém. Talvez porque, afinal, contrariando Richard Bach, sempre há longe e distância.

(Na Gazeta Animal de Setembro)

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