quarta-feira, agosto 16, 2006

LONGE DA VISTA, LONGE DO CORAÇÃO

A vida, sendo difícil por princípio, é na verdade mais difícil para uns do que para outros. E, por vezes, mesmo sem sabermos, tornamos essas vidas ainda mais difíceis. Mas comecemos pelo princípio. Tenho uma amiga que comprou uma casa. A sua primeira casa. É o mais banal dos sonhos embora seja cada vez mais o menos concretizável. Excepto se tivermos pais ricos ou termos ganho a lotaria. Neste caso a sorte é dela. Tem pais ricos. O seu T4 no Chiado com vista para o rio Tejo é a menina dos seus olhos. Uma casa sofisticada, moderna e bem localizada que encaixa na perfeição naquilo que ela considera ser a sua «cara». Mas não se vive numa casa vazia. É fundamental recheá-la. Convidou-me para ir com ela a uma loja de móveis, uma das muitas que balizam a nobre avenida Almirante Reis. Entrámos e sentámo-nos confortavelmente em frente da vendedora da loja. A minha amiga foi pragmática. Queria ver mobiliário de sala exclusivamente fabricado em madeira da Indonésia. Comecei a ficar mal disposto. Mais mal disposto fiquei quando vi passarem-me pela frente dezenas e dezenas de catálogos de mobílias assim e assado, todas elas, claro está, feitas em madeira da Indonésia. A minha amiga lá escolheu um conjunto do mais piroso que se possa imaginar mas obviamente de acordo com a sua «cara», ou seja, na caríssima madeira da Indonésia. Caprichos?! De uma assentada só gastou o equivalente ao meu rendimento anual. O que, convenhamos, também não é difícil. Passadas precisamente duas semanas, convidou-me para ir ver a sua nova mobília colocada no seu devido lugar. Sentados na sua ampla sala, tendo o rio Tejo como pano de fundo e bem acompanhados por um garrafa de Gouvyas Vinhas Velhas, e obviamente cercados pela sua nova mobília em madeira da Indonésia, armei-me em moralista, quer dizer, armei-me em parvo, e resolvi contar-lhe a história dos orangotangos da Indonésia, precisamente aqueles que ficaram sem casa e sem vida para que ela tivesse, no conforto do seu mundo, a melhor mobília que ela podia desejar. Ao fim e ao cabo, a sua «cara». A conversa foi breve e sensata. Comecei por lhe dizer, em jeito de introdução, que os cientistas estimam que se extinguem 20 a 30 mil espécies tropicais por ano, 50 a 80 por dia, 3 por hora. E que as principais causas desta extinção em massa se deve fundamentalmente a alterações do habitat, como a desflorestação ou os incêndios. Peguei, como gosto sempre de o fazer, no exemplo do pássaro Dodó, esse pássaro feio e desengonçado que os marinheiros Portugueses descobriram nas Ilhas Maurícias quando por mares nunca dantes navegados davam novos mundos ao mundo. Aquelas ilhas nunca tinham sido exploradas. Os Portugueses foram os primeiros. Seguiram-se depois os Holandeses, os Franceses e os Ingleses. Uma das principais tarefas destes forasteiros foi dizimar a floresta porque a madeira era de elevado valor. Alguns dos pássaros nativos morreram em consequência porque não tinham qualquer forma de se adaptarem a uma vida sem árvores. Já o Dodó, esse, também uma ave, extinguiu-se doutra forma. Também por culpa do Homem. Claro. Mas mataram-nos. Comeram-nos a todos.
Das Maurícias fui directamente para a Indonésia, essa miríade de ilhas vulcânicas que todos gostávamos de visitar pelo menos uma vez na vida. Comecei por lhe dizer que a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. Pareceu-me oportuno dizer isto. E depois disse-lhe que os orangotangos ocupam duas ilhas da Indonésia: Sumatra e Bornéu. São animais absolutamente fascinantes e perfeitamente adaptados ao ambiente arborícola. Quer dizer. Andam de árvore em árvore. A 50 metros do solo. Pois é nelas que eles vivem. É a sua casa. O seu espaço. O seu home sweet home. Os orangotangos de Sumatra são mais pequenos que os de Bornéu. Isto porque os de Sumatra raramente descem ao solo por causa dos tigres. Os de Bornéu não têm essa preocupação. Por isso comem mais. E também por isso são maiores. Fixa bem isto. Os orangotangos vivem nas árvores. Em Sumatra raramente descem ao solo. Por causa dos tigres. Estima-se que actualmente nestas duas ilhas existam apenas 100 mil orangotangos (há quem conte apenas 20 mil) e daqui a 20 anos serão apenas uma memória. Estarão extintos. Porquê? Porque por esse mundo fora há milhares e milhares de primatas humanos a querer decorar a sua casa com mobília feita de madeira da Indonésia. E como eu te disse há pouco, a madeira da Indonésia vem mesmo da Indonésia. E a madeira é a madeira das árvores, precisamente as milhares de árvores que são abatidas todos os anos em Sumatra e Bornéu. Uma autêntica e trágica devastação. Em nome da predação económica. Dos tais forasteiros. Daqueles que fazem o trabalho sujo mas também daqueles que sustentam o mercado. Consumindo. Porque, afinal, são estes que puxam o fio. Como também te disso há pouco, os orangotangos vivem nas árvores. Ora se lhes tiramos as árvores deixa de haver orangotangos. Exactamente como nas Ilhas Maurícias. Não deixa de ser curioso que os mesmos forasteiros, que gozam da complacência das autoridades locais, ainda têm tempo para pegar nalguns exemplares e vendê-los para o estrangeiro pois há quem não se contente apenas com a madeira. Digamos que estes têm uma posição mais realista. No fim, restam apenas as organizações não governamentais que perante esta tragédia, que é de todos, vai fazendo o que pode. Em Bornéu a situação é dramática. Forças armadas da ONU travam diariamente uma autêntica batalha com os forasteiros armados que insistem nesta forma de ganhar o seu pão. Cerca de mil orangotangos são caçados por ano na província Kalimantán, em Bornéu, e contrabandeados no mercado negro de Kalimantán. Por vezes uma cria de orangotango chega a ser vendida a «clientes internacionais» por 50 mil dólares. Negócio apetitoso, não é?
O vinho acabou-se. Tive de concluir. O desinteresse dela na conversa anulou qualquer interesse que ela teria inicialmente pela minha carne. E conclui assim: nas duas horas que gastámos na loja de móveis na Almirante Reis, extinguiram-se 6 espécies. Obviamente com o teu contributo. Um contributo que, por ignorância ou por indiferença, fizeste questão de trazer para casa. Um bocado de madeira que é afinal um bocado de vida que lá bem longe deixou de ser. Longe da vista, longe do coração. Talvez seja esse o nosso grande pecado. Terminei o monólogo. O meu pressuposto estava correcto. Mandou-me dar uma curva. E eu fui. Nessa noite quase que acreditei que melhor do que um orgasmo efémero somente uma consciência tranquila. Mas mais importante do que isso é que, afinal, nós podemos sempre escolher.

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