terça-feira, fevereiro 28, 2006

O PARAÍSO DE NOVA GUINÉ
A Bela e o Monstro
É notícia em todo o mundo. Veio em todos os jornais, revistas e televisões. Em traços gerais dizia assim: «Um grupo internacional de investigadores descobriu cerca de 150 novas espécies de animais e plantas numa expedição que realizou em Dezembro de 2005 à região montanhosa de Foja, na Nova Guiné». Mas se por um lado esta fascinante descoberta veio engrossar as enciclopédias e os livros de nomenclatura de espécies conhecidas pelo Homem, por outro o espanto não me deixa suficientemente absorto para me ficar somente por uma visão romântica e apaixonada desta descoberta. É claro que não quero ter razão. Nada é mais perigoso que a certeza de ter razão, dizia F. Jacob. Antes pelo contrário. Espero nunca vir a ter razão. Mas tristes aqueles que julgavam nunca vir a ter razão e acabaram decapitados pela história que foi acontecendo à medida que o mundo foi acontecendo. Desses reza a história. E com esses nada aprendemos. Para desgraça daqueles que cumpriam simplesmente a sua existência – os outros animais – e para infortúnio daqueles que esperavam herdar um mundo bem mais real e bem menos feito de histórias contadas no pretérito perfeito.

Mas comecemos a narrativa com a história do pássaro Dodó. No final do século XV, a ilha a que hoje chamamos Maurícia era bem diferente. Absolutamente virgem quanto à povoação humana, a ilha estava repleta de densas florestas com tudo aquilo que implica e a que tem direito uma floresta a sério. Os primeiros europeus que lá chegaram – os portugueses – descreveram o que viram como se tivessem descoberto o paraíso. Não que fosse essa a sua principal motivação. De forma alguma. Para os marinheiros europeus, aquela ilha representava um ponto de paragem no caminho da descoberta de novos mundos. Mas nem por isso deixaram de ficar surpreendidos com o que viram. E o que viram foi um pássaro, gordo, feio, uma «espécie de peru mastodôntico e muito estranho, redondo como um saco insuflado, com a cara de um pombo guerreiro, uma anedota feia da natureza que ainda por cima parecia perdidamente parva. Uma criatura lenta, desengonçada, pesada, que aparentemente era silenciosa e nem sequer conseguia voar, e parecia descuidada ao ponto de nem sequer tentar fugir dos homens [vários relatos autênticos de viagens às ilhas das Índias Orientais desabitadas até à chegada dos Europeus exploram com insistência o tema dos animais que se aproximam dos homens e se deixam abater sem resistência]. Ostentava uma cabeça estranhamente volumosa e o seu bico de pato muito negro e muito largo terminava num gancho robusto. As penas eram cor de cinza, com o peito e a cauda esbranquiçados e as asas amareladas. Caminhava de forma algo desengonçada sobre patas grossas de cor amarela que terminavam em dedos espalmados. Quando tentava correr, movia-se de forma desastrada e as narrativas dos marinheiros dizem-nos que a sua barriga se arrastava pelo chão. Era uma besta plácida e lenta (…)» (Clara Pinto Correia, in Dodologia). Era o Dodó, ou como os portugueses escreviam e diziam, o «pássaro doudo». A tragédia começa logo no princípio do século XVI quando os «colonizadores de oportunidade» começaram por dizimar a floresta pois a madeira era de muito valor. E essa dizimação foi tão levada a sério que actualmente a ilha não tem uma única floresta. Claro está que tudo isto levou à extinção uma série de espécies de aves. Mas a tragédia continua mesmo depois de os portugueses zarparem. È que de facto nós zarpámos mas não antes sem termos introduzido, voluntária ou involuntariamente não sei, macacos, cabras e ratazanas naquela paisagem que desconhecia por completo tais espécies. E depois vieram os Holandeses (que introduziram o veado). E os Francês e os Ingleses (que introduziram as lebres, os magustos, os porcos, os musaranhos, cães e gatos). E depois deu-se a extinção do Dodó. Como? Ninguém sabe. «Só podemos especular. Cerca de oitenta anos depois de os holandeses terem reclamado para a sua coroa a ilha Maurícia, cercado de todos os lados e sem ter para onde fugir, o último [Dodó] sobrevivente deve ter sucumbido em situação e data para sempre imprecisas. Houve uma última pessoa que cozinhou o último pássaro para um último jantar copioso. Houve um último porco, ou um último macaco, que fugiu a correr para um recanto tranquilo bem aconchegado pela sombra para saborear com calma o último pinto deste último pássaro, que levava preso entre os dentes. E estava feito.» (Clara Pinto Correia, in Dodologia). Desta vez, o paraíso (e todos os seus elementos) foi expulso das nossas vidas dando a ideia de que entre nós e os paraísos que vamos descobrindo há uma espécie de fatalismo histórico que acaba sempre na queda.

Ainda no capítulo da descoberta de pedaços de terra virgens, a obra La terre australe connue de Gabriel de Foigny, publicada em Genebra no ano de 1676, oferece-nos uma passagem sobre as plantas e os animais do Congo para mim exemplar nos propósitos dos ocidentais. Dizia assim: «As margens do rio eram habitadas por uma grande variedade de animais dos quais o mais comum e encantador é parecido com os carneiros criados em volta de Leiria, excepto que estes aparecem em quase todas as cores: quero dizer vermelhos, verdes, amarelos e um azul tão impressionante que a nossa púrpura da nossa melhor seda não poderia igualá-lo. Perguntei porque é que não havia comércio destas luxúrias e foi-me respondido que a cor desaparecia com a vida dos animais». Pois. Mas o daltonismo das civilizações ocidentais prevaleceu. E hoje, tantos séculos depois, o optimismo dói a entranhar na nossa estrutura de pensamento e de previsão como se de farpas se tratassem. Senão vejamos. Estimativas das taxas de extinção da actualidade (Wilson, 1992) indicam-nos que se extinguem entre 20 mil e 30 mil espécies tropicais por ano. Esta taxa sofreu uma elevação proporcionalmente à elevação da população mundial. As principais causas da perda de biodiversidade continuam a ser as alterações dos habitats (conversão, fragmentação, simplificação estrutural), a captura e a comercialização de espécies exóticas e a sobrexploração. As dizimações florestais continuaram a acontecer muito depois das Maurícias. Um estudo recente levado a cabo por investigadores da Universidade Harvard (EUA) afirma que o aquecimento global do planeta e a desflorestação podem dividir a Amazónia (considerada o pulmão da Terra) em duas, transformando em savana uma área de 600 mil quilómetros quadrados no meio da floresta. Algo que tinha já sido previsto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que dois anos antes tinha publicado um estudo em que indicava uma perda até 60% da mancha verde da Amazónia.

Para os outros animais, as nossas boas intenções não significam absolutamente nada. Até porque de boas intenções está o inferno cheio. E como escreveu Jean Rostand, as teorias passam, a rã fica. O paraíso de Foja é absolutamente espantoso. As espécies ali descobertas também. Mas agora reparem neste extracto de notícia publicado em 09-02-2006 no Ciência Hoje on-line do Brasil: «Os coordenadores do projecto afirmaram que, por enquanto, a floresta não corre risco de sofrer acções predatórias do homem, já que os únicos habitantes locais são de duas etnias, que encontram tudo o que precisam para a subsistência perto de suas aldeias. Além disso, não há sistema de transporte ou estradas e, por se tratar de um santuário de vida selvagem, o governo local não fornece permissões de exploração madeireira no local. Beehler, um dos coordenadores, porém, alerta que o desenvolvimento de países vizinhos, principalmente a China, pode criar nos próximos anos uma enorme procura por madeira, entre outros recursos encontrados na floresta, o que representaria um risco à biodiversidade local. “Com o tempo, tudo isso pode ficar ameaçado”, adverte. A equipe de pesquisadores admite que o período de buscas não foi suficiente para explorar todo o local e que pode haver ali outras espécies desconhecidas. De acordo com Beehler, uma nova expedição para o mesmo local poderá acontecer antes do final do ano.» Estão a ver? É precisamente aqui onde eu quero chegar. Se uns gritam que foi uma descoberta fascinante para o mundo conhecido e que deve ser agora preservado, eu grito que a melhor sorte para aquelas espécies seria o Homem nunca as ter descoberto. Terei razão? Claro que não. Lá dizia F. Jacob que nada é mais perigoso que a certeza de ter razão. E pode ser que o Homem tenha reaprendido a ver o mundo. E se assim for, por favor avisem-me. É que eu posso muito bem andar por aí distraído com o canto da sereia.

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