quinta-feira, junho 02, 2005

Histórias da Carochinha

Quando um amigo meu, que é professor de história, me ofereceu o livro História Alegre de Portugal, de Manuel Pinheiro Chagas, com uma brilhante ilustração de Artur Correia, eu achei muita graça. Mais ainda porque me considerava um ignorante que pouco ou nada sabia sobre a história de Portugal pois aquilo que tinha aprendido na escola andava perdido nos meus arquivos de memória a longo prazo (se é que alguma vez ali estiveram!). Noutro dia estava eu a arrumar a minha biblioteca e peguei novamente nesse volume e o texto da contra-capa despertou-me novamente a atenção. Dizia assim: «Esta História Alegre de Portugal, da autoria de Artur Correia, é a adaptação a banda desenhada da obra de Manuel Pinheiro Chagas, brilhante homem de letras e distinto político do século XIX. Pinheiro Chagas inventa um narrador, João Agualva, mestre-escola aposentado, que, cansado de repetir ‘histórias da carochinha’, decide, ao longo de dez serões, dar a conhecer, em termos didácticos e acessíveis, a História de Portugal a um grupo de saloios da sua terra, situada entre Belas e o Cacém.» E de repente aquilo deixou de ter graça. É porque, na verdade, a gente nunca deixou de ouvir «histórias da carochinha». E hoje estamos mais cansados do que nunca. Tudo isto não seria um grande problema se fossemos proactivos e empreendedores e espertos. Mas a verdade é que esses saloios para quem Pinheiro Chagas escreveu a sua obra deram origem a outros saloios mais sofisticados, é certo, mas que ainda não deixaram de ser saloios, ou seja, nós. Não acreditam? Então reparem lá nesta subtileza desconcertante.

No final do ano passado, a Editora Relógio d’Água lançou dois livros sobre o Estado da Nação. Primeiro, Trinta anos de Democracia: E depois pronto, de Clara Pinto Correia; depois Portugal, hoje: o medo de existir, de José Gil. E o percurso que estes dois livros tiveram é chapa cinco da forma como nós olhamos para a nossa dura realidade e acreditamos ter a obrigação de a suportar. E mais. Caímos sempre na armadilha do politicamente correcto e entupimo-nos com efabulações abstractas e filosóficas dessa dura realidade. E adoramos culpar os outros. Pois. A culpa é do Salazar, esse ditador que nos condenou à miséria intelectual e material. E pronto, não passamos daí. E isto está tão enquistado na nossa mente que o livro de José Gil é top de vendas já com sete edições e o livro de Clara Pinto Correia não passou da primeira. E eles são bem diferentes. Um (de José Gil) entope-nos de ideias abstractas e conceitos filosóficos de arrepiar a pele. É verdade. Já o tentaram ler? Eu já. Várias vezes. E ainda não o consegui terminar. Não estou com isto a querer dizer que o senhor Gil, que até é um filósofo bem reputado na praça dos intelectuais, escreveu este livro com ligeireza. Deus me livre. Mas agora que as pessoas adoram ouvir conversas que não entendem, ah isso é que gostam. E depois ficam com aquele ar de que está a perceber tudo mas, na verdade, não está a perceber coisíssima nenhuma. Olhem, às vezes até parecemos um burro a olhar para um palácio. E ficamos tão confusos que imediatamente a seguir esquecemos tudo e voltamos à nossa vida (a)normal. Já o outro (de Clara Pinto Correia) fala-nos dessa dura realidade que insistimos muito teimosamente em esconder e conta-nos, sobretudo, histórias que facilmente encaixam noutras histórias que também nós conhecemos mas que contamos muito baixinho porque não fica bem dizer estas coisas e também porque se passou lá no emprego e o medo existe mesmo. Ora reparem lá neste caso de estudo. No outro dia, uma amiga minha que trabalha num hospital veterinário de uma faculdade pública (isto é, financiada por dinheiros públicos, note-se) contou-me que o pessoal da cirurgia anestesiou um animal mas que depois não pode prosseguir porque alguém tinha roubado o kit cirúrgico (daqueles de especialidade e caríssimos) e, portanto, teve de ser cancelada. Inventou-se uma história para disfarçar o embaraço e marcou-se a cirurgia para outro dia. Pior. A história terminou mesmo por aqui pois parece que é normal! Depois de tudo isto, que me foi contado num tom de voz muito circunscrito, quando eu lhe disse que ia escrever sobre isso ela disse-me: oh, nunca mais te conto nada! Estão a ver?! E depois ainda dizem que não há censura neste país! Bom, talvez tenham deixado de existir os lápis azuis. Talvez. Mas deixaram de ser uma realidade concreta para se tornar num fantasma. E desses não nos livramos tão cedo. A não ser que consigamos tomar consciência que a nossa obrigação não é de suportar mas sim de mudar. E por isso é que eu acho que o livro de Clara Pinto Correia foi fortemente censurado acima de tudo pelo inconsciente colectivo. E não merecia. Está bem que eu sou fortemente suspeito porque tenho uma admiração profunda e referencial pela autora mas isso não muda nada. Aqui a questão é bem clara. As pessoas entupiram os neurónios com filosofia e seguiram a sua vida sem mudarem nada. E evitaram ao máximo essa dura realidade da qual temos uma vaga ideia. Pois é. Nós somos o monstro. E enquanto não trouxermos isso ao nosso consciente colectivo, vamos andar os próximos trinta anos a culpar o Salazar. Só espero que depois não seja tarde demais. É que nessa altura eu já sou um cinquentão.

Sem comentários: