quinta-feira, setembro 27, 2007

BEBES-ME PARA ESQUECER

Hoje, depois de me teres ido esperar ao aeroporto, depois de termos dormido juntos, depois de termos passado a noite toda a amar-nos corpo a corpo, depois de ter pensado que agora é que íamos ser felizes para sempre, depois de teres prometido que sim, que agora é que íamos ser felizes para sempre, depois de me teres perguntado como é que iriam ser os nossos filhos, depois de teres ido embora, depois de me teres esquecido, estatelei-me contra essa grande verdade, que só é grande porque encontra nas palavras um sentido para tudo aquilo que estamos a sentir e a não querer sentir. Bebes-me para esquecer. É isso mesmo. Bebes-me com a mesma convicção, com a mesma certeza, com o mesmo desespero de quem acha que, depois de beber uns co(r)pos, os problemas desaparecem. Bebes-me para esquecer. Não para me esquecer. Bebes-me para esquecer o outro, aquele, o tal. E bebes-me com urgência porque também com urgência precisas de esquecer. Talvez por isso te entregas de corpo mas não de alma. Por favor, diz-me quem vês quando fechas os olhos de cada vez que te beijo no pescoço ou te mordisco o lóbulo da orelha. Eu preciso de saber mesmo que diga que não quero saber. Espera. Não digas. Já sei que não sou eu quem vês. Eu não passo de um corpo onde podes projectar quem perdeste e esquecer também quem perdeste, tudo ao mesmo tempo. Quando me olhas não é a mim que vês, não é a mim que queres ver, não é a mim que precisas de ver. Para ti não tenho definições. Não sou uma imagem nítida. O teu olhar sobre mim é míope. Desfocas-me. E eu, de repente, para ti, passo a ser um vestígio daquilo que perdeste, daquilo que vai lá longe e que à medida que se vai afastando, a definição vai-se perdendo. Na verdade, porque não querias que essa imagem acabasse por se desvanecer na linha do horizonte, inventaste-me só para ainda o teres, isto é, quem perdeste, mais um bocadinho. E, talvez, para sempre. Se a vida só fosse feita de hoje, então agora é que íamos ser felizes para sempre mesmo. Mas não. O amanhã é outro dia. Acorda-se com uma dor de cabeça gigantesca que mais não é do que uma ressaca daquilo que se fez ontem. As roupas estão espalhadas pelo chão do quarto, os joelhos estão esfolados, os lençóis escandalosamente amachucados, duas almofadas. Hoje, quando acordaste e olhaste para mim da mesma forma que o tinhas feito quando me olhaste na primeira vez que foste embora, percebi tudo. Nem precisaste de dizer uma única palavra. Vesti-me e fui-me embora. Já tinhas esquecido quem precisavas esquecer. Da mesma forma que não se esquecem garrafas vazias, também eu não precisava de ser esquecido. Precisamente porque, para ti, eu nunca existi. Tudo isto não mata mas mói. E podemos até enfiar-nos no carro e pôr bem alto a música do Paulo Gonzo que diz «Males de amor, quem é que os não tem, sempre tão fatais, mas no fim, não matam ninguém, passam e nada mais (...)». As coisas até podem ser assim, podemos até convencer-nos e, sobretudo, convencer os nossos amigos que aquilo já passou, que a vida continua, que agora somos muito amigos, bla, bla, bla... Mas, bem fundo, uma dorzita incomoda-nos. Tentamos ignorá-la, tomamos comprimidos, chás e outras coisas que tais. Nada funciona. Na verdade, essa dorzita não é mais do que o cansaço pelos murros no estômago que vamos coleccionando e que têm, como efeito mais imediato, a confusão das coisas. Meio perdidos, meio desiludidos, meio convencidos, meio empenhados em recomeçar do zero, meio apaixonados, meio tristes, meio zangados, meio resignados, meio cansados, lá continuamos o nosso caminho em direcção ao fim com um balão de pensamento por cima de nós afirmando «Agora é que eu vou ser feliz para sempre.» ao mesmo tempo que vislumbramos alguém a cruzar o nosso caminho. E lá recomeça tudo outra vez. Na verdade, tudo isto é simbólico da forma como fazemos acontecer a vida. Bebemos uns para esquecer outros. Obviamente que isto não tem mal nenhum até porque o mal, esse, vai todo para quem não aguenta ser bebido, para quem não aguenta mesmo tendo de aguentar. Ontem bebeste-me para esquecer. Amanhã, é a minha vez de beber para te esquecer.

Sem comentários: