sexta-feira, março 16, 2007

POR FALAR NISSO: PORQUE FALAMOS?

O professor entra na sala num passo firme e decidido, próprio de quem tem coisas para dizer. Está tão concentrado que se esqueçe de dizer 'boa tarde'. Tira da mala o seu caderno e pousa-o na mesa, senta-se, passa a mão pelo cabelo e de seguida oferece um olhar sobre a sala. Faz-se silêncio. Espera-se que comece a falar. Como sempre, demora algum tempo a activar a fala mas ficamos sempre com a sensação que naqueles breves segundos ele estruturou mentalmente as duas horas e um quarto de lição sobre a metáfora no discurso poético. Nesse momento sentimo-nos distantes embora fisicamente próximos. Depois de passar mais uma vez a mão pelo cabelo começa então a falar. As pontas das canetas tocam de imediato o papel dos cadernos. Não pode escapar nada. Como sempre, pois esse é o seu estilo, começa por dizer que o tema é muito vasto e que provavelmente vai falar muito pouco sobre a metáfora no discurso poético pois antes de falar desse conjunto precisa de falar sobre o que é a metáfora, o que é o discurso e o que é a poesia. Areia demais para uma camioneta de quatro sessões de duas horas e um quarto. Mas não faz mal. Sabemos que vamos ficar hipnotizados com as suas palavras. Gostamos do seu estilo. E, sobretudo, gostamos do que diz.

E por falar nisso, porque falamos? Uma frase fundamental do pensamento ocidental pertence a Aristóteles e diz o seguinte: «o ente diz-se de muitas maneiras». De facto, as coisas dizem-se. Nós passamos uma parte do nosso tempo a dizer coisas. Mas o que significa então dizer? Bem, a possibilidade de resposta mais universal é que dizemos, isto é, falamos para comunicar. Também é verdade mas é mais do que isso. Para Cohen, a linguagem parece ser um substituto das próprias coisas, isto é, as palavras estão em vez das coisas. Aliás, torna presente o que está ausente. Isto implica que se eu tivesse permanentemente acesso à realidade absoluta não falava, via. Nós falamos porque não vemos. Se eu pergunto as horas e me respondem que são três e meia é porque eu não estou a ver o relógio. Se eu tivesse acesso visual às horas então não precisava de perguntar que horas são, isto é, não precisava de falar. Os (outros) animais não falam porque não estão longe das coisas. Eles são as coisas. Passámos depois para a noção de nomear. Para os hebreus, dar o nome corresponde a tornar as coisas coisas, isto é, corresponde a dar uma identidade a uma coisa. Vejamos o seguinte texto bíblico:

«O Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes.» (Gn 2, 19-20)

Hoje a nossa noção de nome é praticamente neutra. Mas hoje sabemos que um cão que é um cão porque alguém lhe deu esse nome. Isto é muito importante porque é esta ligação entre a palavra e o que ela representa que nos faz falar. Quando eu digo que o cão é o melhor amigo do homem não preciso de ter nas mãos um cão para saber que um cão é aquilo que tenho nas mãos. Mentalmente o que se passa é que a palavra cão me remete para a coisa cão que tem quatro patas, pêlo, etc. Mesmo sem estar a vê-lo eu sei o que é um cão. Daí as palavras estarem em vez das coisas e tornarem presente o que está ausente, enfim, o que não vemos.

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